Chico Buarque completou 72 anos no domingo (19). Com ele, há
uma geração resistente que ultrapassa agora os 60 anos. Para os novos jovens
dedico as linhas a seguir, que extraio do próximo romance.
Estávamos no carnaval, em um domingo onde tudo era sol,
frevos, bebida, promessa de amor rebelado em corpos de mulheres cheias de
cores, miçangas, fantasias, que pareciam clamar "dizes o que
desejas". De repente deve ter ocorrido a Zacarelli que toda festa ia
acabar, mais cedo ou mais tarde, quem sabe se mais cedo, como um fim
inesperado, pois todo fim de gozo é inesperado. Maldito, não importa se ao fim
de um padecimento, em que a morte chega com data de calendário.
Zacarelli, sem palavras, olhou a rua, viu as moças que
passavam aos gritos, aos risos, e sorriu um sorriso triste, que caberia no
frevo-regresso que canta "adeus, ó minha gente, o bloco vai
embora...". Mas ele não ia se abater pelo aviso do fim da linha do trem,
da entrada em um túnel jamais visto, quando a viagem é presente e os vagões
cantam os frevos mais lindos e guerreiros de Pernambuco. "Rejeito",
ele se disse. Então ele se virou para mim e falou, num êxtase em meio à
felicidade que passa:
- Sabe, rapaz? Os cientistas vão descobrir a imortalidade.
A minha cabeça recua como se houvesse levado um direto,
antes do nocaute. Devo tê-lo olhado com um ar de quem espera a revelação do
mais íntimo segredo de todos os tempos. O mais simples seria lhe dizer "fale
baixo, se nos escutam, quebra-se o encanto".
As pessoas na rua nem nos veem ainda, mas saberão que
traçamos o seu, o nosso futuro, uma voz do diabo me sussurra. Não estaríamos
ali, mais uma vez, tramando o porvir da revolução assim como nos anos da ditadura?
Me ocorre agora. Ali, como em Olinda, nesse carnaval conspiramos pela boa-nova
do socialismo mais radical: a imortalidade comunista para todos e todas as
classes. E na ditadura, como agora, os alienados de nada sabem. Antes, das
denúncias de torturas e assassinatos. Agora, para a redenção definitiva, me
parece na hora, e mais concentrado escuto Zacarelli.
- A história da ciência é também a história do prolongamento
da existência humana. Toda ciência é para o homem, em última análise. Sim,
temos os desvios da bomba nuclear, mas isso é da fase imperialista do
capitalismo. Nós lutamos pela antibomba, compreende?
Compreendo, e com os olhos em lágrimas balanço o queixo pelo
achado poético e verdadeiro. Nós somos a antibomba. Nós lutamos pela antibomba.
Vida, nós te queremos eterna. Que venha a morte, não passará. Por nós, não,
maldita, não passarás. Assim como este carnaval, que será eterno enquanto nossa
necessidade e o povo do Recife e Olinda existirem.
Pois a vida é o que resiste. Que contradição mais estranha,
eu descubro e me digo: a vida, tão breve, é tudo que resiste. Mas que paradoxo:
se ela está no tempo que se dirige para o fim, se ela é naquilo que deixará de
ser, como resistirá à Irresistível? – É que existe uma resistência na duração
do momento, pela intensidade, luz ou cintilação do breve.
A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e
trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a
imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem
não chegará com um aviso no alto-falante, "atenção, senhor passageiro,
chegou a sua hora". Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o
transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da
duração, a nossa vida é a resistência do fugaz. Nós só vivemos enquanto
resistimos.
*Urariano Mota é escritor e jornalista, nasceu em 1950 em
Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife, onde vive. Autor de “Soledad no
Recife”, escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Os Corações Futuristas e a
sua novela, Japaranduba.
Via – Portal Vermelho
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