Apesar de 2016 ter sido um ano terrível para as esquerdas da
América Latina, este ano trará dificuldades sobretudo para os países que mais
confiaram nos EUA.
O ano de 2016 não foi nada bom para as esquerdas na América
Latina. O golpe jurídico-parlamentar no Brasil e a subsequente vitória das
direitas nas eleições municipais foram os mais severos, mas também se viu a
eleição de um presidente neoliberal e um Congresso fujimorista no Peru, a
derrota em referendo de um muito aguardado plano de paz para a Colômbia, mais
um governo conservador na República Dominicana e a derrota da Concertación para
a direita na maioria das eleições municipais do Chile, fora reveses menores.
As esquerdas bolivarianas, apesar de tudo, saíram-se menos
mal. A crise econômica e política da Venezuela agravou-se, mas Nicolás Maduro
continua no poder e sua popularidade, apesar de ter caído para 23%, ainda não é
tão ruim quanto a de colegas como o mexicano Enrique Peña Nieto, a chilena
Michelle Bachelet e o brasileiro Michel Temer.
A oposição, vitoriosa nas eleições legislativas de 2015,
tentou primeiro emendar ilegalmente a Constituição para convocar novas
eleições, depois acatá-la e recolher assinaturas para convocar o plebiscito
revocatório nela previsto.
Quando o partido chavista obteve do Judiciário o adiamento
do processo, tentou a insurreição, mas o fracasso da greve geral marcada para
28 de outubro mostrou à coligação opositora que não tinha o apoio popular que
imaginava e a obrigou a aceitar a proposta da Unasul e do Vaticano e sentar-se
à mesa para negociar.
Na Bolívia, Evo Morales perdeu, em fevereiro, o referendo
com o qual esperava viabilizar mais uma reeleição em 2019. Apesar disso, do
escândalo em torno da ex-amante Gabriela Zapata, presa por tráfico de
influência e de protestos violentos que incluíram o linchamento de um
vice-ministro do Interior por uma turba de mineiros cooperativados, continuou a
ser o chefe de Estado mais popular da América Latina.
No fim de 2016, porém, seu prestígio começou a ser abalado
pela falta d’água causada pela combinação da pior seca dos 25 anos com o
desaparecimento de geleiras nas quais existiram as maiores estações de esqui do
mundo e de onde costumava descer água para abastecer a capital.
As cidades de El Alto e La Paz foram submetidas a um severo
racionamento, após a perda de 90% das reservas usadas para seu abastecimento. O
Lago Poopó, que foi o segundo maior do país (após o Titicaca), desapareceu
completamente.
Não há como isso não abalar a popularidade do governo. Neste
caso, e em outros, como a crise energética da Venezuela em 2016, a
imprevidência pode ter agravado o problema, mas a questão de fundo é o
aquecimento global, que elevou a temperatura média nos Andes em 0,7 grau desde
os anos 1930.
Os bolivianos estão entre os menos culpados pela emissão de
gases de efeito estufa, assim como os camponeses dos Andes peruanos e os
sertanejos do Nordeste brasileiro, também sacrificados pelo problema, mas a
natureza fará os inocentes pagar pelos pecadores, ou ao menos antes desses.
Rafael Correa, o bolivariano do Equador, tem menos destaque,
mas governa com razoável tranquilidade. O ex-guerrilheiro sandinista Daniel
Ortega, apesar de gestos autoritários, foi reeleito presidente da Nicarágua com
72% dos votos e folgada maioria no Congresso.
O projeto chinês de um canal interoceânico dividiu opiniões
e preocupa ecologistas, mas os eleitores parecem otimistas com as perspectivas
desse enorme investimento em tempos de vacas magras no comércio internacional.
À parte a morte de seu irmão Fidel, o presidente Raúl Castro
teve um ano bem satisfatório. Barack Obama visitou Havana, as relações
diplomáticas com Washington foram restauradas e, o que é mais importante, o
anacrônico embargo imposto por John Kennedy começou a ser relaxado, de forma a
abrir o caminho a algum comércio e investimento e muito turismo estadunidense
em Cuba, o suficiente para trazer perspectivas melhores para 2017. Se Trump não
voltar atrás nesses progressos, como discutimos adiante.
E, apesar do revés do referendo, as Farc talvez ainda tenham
razões para brindar, cautelosamente, ao ano-novo. A campanha de Álvaro Uribe,
com apoio de latifundiários e paramilitares receosos de uma investigação séria
de crimes contra a humanidade e apropriação de terras de camponeses, conseguiu
persuadir os eleitores colombianos a rejeitar a primeira redação do acordo de
paz com o governo do presidente Juan Manuel Santos.
Entretanto, foi assinada uma nova versão, com mais precisão
nos detalhes, mas poucas mudanças substanciais além do esvaziamento parcial da
Jurisdição Especial da Paz, os tribunais especiais de transição pelos quais a
ultradireita e os latifundiários se sentiam ameaçados.
Desta vez, Santos pretende aprová-la no Congresso, onde tem
maioria, em vez de arriscar outro plebiscito. Se tudo der certo, a guerrilha
entregará as armas para entrar na vida política, com acesso garantido a
cadeiras no Parlamento, fundo partidário, estações de rádio e debate aberto
sobre o papel dos militares e da ultradireita em massacres e assassinatos
políticos.
Quanto às direitas neoliberais, que por vias legítimas ou
não chegaram ao poder em 2016 ou 2015, deveriam ser ainda mais cautelosas. Seu
ciclo pode mostrar-se bem mais curto do que foi o das esquerdas. Mauricio Macri,
Michel Temer e suas equipes chegaram ao poder com a expectativa de reativar os
investimentos e a economia com sua mera presença, mas na vida real as economias
de seus países se deterioraram ainda mais com o início de seus governos.
O caso argentino pode ser considerado crítico. A inflação
acelerou-se com a maxidesvalorização e os tarifaços aplicados após a posse de
Macri. Ao contrário do que esperavam os otimistas, não foi um efeito
temporário.
Segundo o insuspeito índice da Cidade de Buenos Aires, a
inflação nos últimos 12 meses do governo de Cristina Kirchner (até novembro de
2015) ficou em 24%, mas a inflação nos 11 meses seguintes foi de 42%. A
inflação de outubro foi de 2,9% e o ano provavelmente fechará em 46%.
As consultorias econômicas estimam a queda do PIB de 1,8% a
2,4%. Combinada com as demissões em massa de funcionários, a redução de poder
aquisitivo aumentou a população abaixo do limite de pobreza de algo entre 21% e
23% para mais de 33% até o fim do segundo semestre.
Sequer se pode dizer que o sacrifício ao menos serviu para
recuperar a competitividade ou ajustar as contas públicas. Após pagar 9,3
bilhões de dólares aos fundos abutres para recuperar o acesso ao mercado
financeiro, o governo ampliou a dívida externa em 53 bilhões, um aumento de 10%
do PIB. Como nas crises de 1979, 1989 e 2001, o Estado endivida-se para cobrir
despesas correntes e só atrai capitais externos para especulação de curto
prazo.
Embora a balança comercial tenha melhorado um pouco em
relação a 2015, isso se deveu à queda drástica do consumo e, consequentemente,
das importações (cerca de 9% a menos), pois as exportações caíram 2% nos
primeiros nove meses. Os sindicatos, novamente unidos na oposição ao governo,
exigem um plano de emergência e o congelamento das demissões.
O presidente já viu serem derrotadas várias das suas
iniciativas, inclusive a reforma eleitoral e a revogação dos contratos
coletivos de trabalho e não pode esperar um Congresso menos hostil.
Dificilmente Macri conseguirá reverter a deterioração da economia a tempo de
influenciar a seu favor a eleição legislativa de outubro de 2017, ou mesmo
depois.
Sua aposta parece ser desmoralizar a oposição com processos
contra kirchneristas por corrupção, mas essa é uma faca de dois gumes. Um dos
processos, por exemplo, responsabiliza Cristina Kirchner e sua equipe econômica
por oferecer garantias contra a desvalorização do peso que fizeram o Estado
sofrer perdas.
Entretanto, a causa direta das perdas foi a
maxidesvalorização do início do governo Macri e foram seus partidários que
fizeram fortunas ao apostar no dólar.
E o quadro argentino, assim como o de outros governos
latino-americanos a colocar todas as suas fichas no retorno a um mundo que não
mais existe, o do neoliberalismo dos anos 1990, tornou-se especialmente
nebuloso com a vitória de Donald Trump em Washington.
A nação mais pesadamente afetada será, obviamente, aquela
que há mais tempo e de maneira mais continuada investiu na parceria com o
vizinho do Norte: o México.
Desde 1991, a economia mexicana foi reestruturada para
atender ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, pela sigla em
inglês) e à demanda do vizinho do Norte. Vários setores, inclusive grande parte
de sua agricultura tradicional, foram varridos pela concorrência dos produtos
estadunidenses, o que foi um dos motivos da deflagração da guerrilha zapatista
em Chiapas.
Um vasto setor industrial de “maquiladoras” foi criado na fronteira
para aproveitar sua mão de obra barata na montagem de automóveis e outros bens
duráveis e no empacotamento de produtos diversos destinados aos mercados
estadunidense e canadense, à custa do desmantelamento da legislação trabalhista
e do movimento sindical.
As maquiladoras somam hoje 2,65 milhões de empregos, ou 5%
da população economicamente ativa. Exportam 235 bilhões anuais, 59% do total
nacional. As exportações respondem, por sua vez, por 25% do PIB. Em 2015, o
México exportou 309 bilhões aos EUA (75% de todas as suas vendas externas) e
importou 187 bilhões.
O que acontece se o Nafta for por água abaixo? Em princípio,
Trump pode dar aviso prévio de seis meses para se retirar do tratado no
primeiro dia de governo. Não parece provável uma medida tão extrema e brusca,
mas é certo que o acordo sofrerá, no mínimo, sérias restrições e uma forte
erosão.
Também correm o risco de se verem pendurados na brocha
outros que esperavam atrair capitais dos EUA e incrementar exportações para
esse país, a começar pelos parceiros de Barack Obama na proposta do Tratado
Transpacífico, que incluem Peru e Chile.
O quadro peruano não é comparável com o argentino, mas não é
tão brilhante quanto o esperado crescimento de 4,2% no PIB de 2016 pode
sugerir. O presidente Pedro Pablo Kuczynski enfrentou um escândalo de corrupção
nos primeiros cem dias de governo.
Seu médico pessoal, nomeado assessor de saúde, foi gravado
dizendo a um amigo que “você não faz ideia da quantidade de grana que vamos
ganhar”. Foi rápido em demiti-lo, mas enfrenta uma maioria parlamentar
fujimorista, sem nenhum escrúpulo em chantagear o governo e se aproveitar do
primeiro passo em falso para derrubá-lo.
Nada mais tolo do que dizer, como Michel Temer, que a
ruptura com o México e o Nafta pode abrir oportunidades para o Brasil, ou para
qualquer outro país latino-americano. A razão de ser da promessa de campanha de
Trump é criar empregos para estadunidenses, não para brasileiros.
Além de cancelar a participação nos EUA no Tratado
Transpacífico, Trump fala de dissolver o Nafta e taxar produtos de filiais de
transnacionais de seu país no exterior. Quer forçá-las tanto quanto possível a
trazer fábricas e empregos de volta ao território nacional.
Se depender de seu governo, os EUA não só deixarão de importar
produtos industriais da América Latina como reduzirão seus investimentos, mesmo
se isso abrir oportunidades para a China.
Os exportadores de commodities com os quais os EUA não têm
interesse em competir, como café ou cobre, são os únicos a não precisar recear
barreiras comerciais diretas, mas nem por isso devem sair ganhando.
Ainda que alguns setores da economia estadunidense possam
ser beneficiados pelo protecionismo, a expectativa de praticamente todos os
economistas é de que a reviravolta nacionalista reduza o comércio internacional
e freie o crescimento econômico na média mundial, o que é ruim também para os
produtos primários.
O programa de Trump inclui políticas semikeynesianas de
reativação da economia baseadas em redução de impostos para os privilegiados,
gastos militares e investimentos em infraestrutura. É possível que as medidas
acelerem o crescimento do PIB dos EUA a médio prazo e alimentem uma bolha
especulativa, e é certo que o Fed reagirá elevando o juro básico, ou de
imediato ou assim que a inflação der sinal de aceleração.
Isso reduzirá a disponibilidade de dólares no mercado
financeiro, deixará em dificuldades governos e empresas que se endividaram
durante o período de juro praticamente nulo e provavelmente valorizará o dólar
em relação às outras principais moedas, criando problemas de competitividade
para as nações latino-americanas cujas economias foram dolarizadas.
Isso inclui não só aqueles mais associados ao capitalismo
estadunidense como também o bolivariano Equador.
O México é o maior, mas não o único ameaçado pela promessa
de Trump de expulsar imigrantes em situação irregular. A metade do número
estimado de 11 milhões provavelmente veio do México, mas ao menos um quarto
deles é de outros países latino-americanos.
Proporcionalmente à população, El Salvador, Guatemala e
Honduras têm mais cidadãos nos EUA do que o México, e os números absolutos de
Colômbia, Peru, Equador e Brasil também são consideráveis.
Além dos problemas sociais de receber de volta milhares de
imigrantes em um ano de crise, desemprego e possível colapso das exportações
para os EUA, pode pesar para esses países, principalmente os menores, a perda
das remessas enviadas pelos emigrantes para suas famílias.
A Venezuela pode ter certeza da má vontade de Trump. Em uma
de suas raras referências à América Latina ao sul do México, prometeu “estar
com os oprimidos da Venezuela que quer ser livre e pede ajuda”.
Entretanto, Maduro não esperava melhor tratamento por parte
de Hillary Clinton, responsável pelo golpe em Honduras e talvez também no
Paraguai. Do ponto de vista de Caracas, a vitória republicana não chega a
piorar suas perspectivas.
Em relação a Cuba, a posição de Trump é menos extrema que a
de muitos republicanos e não muito distante da corrente principal do partido.
Não se disse contrário, em princípio, ao diálogo, mas para
ele Obama fez um “acordo ruim” e promete impor mais condições para manter a
abertura iniciada ao turismo e a alguns investimentos.Pode não ser nada demais,
mas, por via das dúvidas, Havana organizou uma série de exercícios militares
assim que se definiu o resultado da eleição em Washington.
Tampouco se pode contar com acordos comerciais com Bruxelas
para amortecer as incertezas criadas por Washington. Pelo contrário, pode-se
recear do Velho Mundo novos sustos. Mesmo que as eleições da França, da
Alemanha e talvez também da Itália em 2017 não tragam mais governos de direita
populista, a desintegração da União Europeia e a perspectiva de um colapso do
comércio e das finanças internacionais pior que o de 2008, a ascensão do
nacionalismo conservador significa menos disposição para aberturas a produtos
do resto do mundo, inclusive importações agrícolas da América Latina.
Mesmo em vias de desaceleração, a economia chinesa é a
última palha à qual as economias mais voltadas para o mercado externo poderão
se agarrar, principalmente aquelas que contavam com o Tratado Transpacífico,
concebido por Obama para tentar isolar a influência de Pequim.
O efeito mais duradouro de um governo Trump
talvez venha a ser o fortalecimento da presença do dragão nessa região que há
três anos John Kerry, o vice de Obama, insistia em chama
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