Paris, França. Outono de 1976. O conflito leste-oeste seguia
intenso. O mundo soviético e o mundo livre conduziam a atenção e o destino dos
povos. O choque do petróleo dos anos anteriores punha fim aos tempos gloriosos.
O racionamento econômico impunha contingências. A geração nascida após as
guerras totais começava a viver em hesitação permanente. Os espetáculos de maio
de 1968 ainda se faziam sentir. Seus efeitos positivos e nefastos iam revirando
as entranhas da sociedade. O general De Gaulle (1890-1970) e seu sucessor,
Georges Pompidou (1911-1974), passavam à História.
O presidente Valery Giscard d'Estaing, por seu turno, fazia
o que podia para guardar algum protagonismo francês naquele mundo de brutos. A
morte de Franco na Espanha e de Mao na China, como o desaparecimento do regime
de Salazar em Portugal, conduziam indícios de mudanças de importância. Da
África, às Américas, ao Oriente médio tudo ganhava novos respiros, novos
contornos, novos sentidos mesclados em intensa e complicada aceleração. Os
pretensos sistemas de compreensão desses eventos seguiam, como de costume,
frágeis, nefandos e anacrônicos. O cultivo da memória travestida em História
lançava o presente ao cultivo do imperativo jornalístico. Atividades
científicas concernentes à ação humana grassavam em demérito progressivo quanto
mais se distanciassem do passado.
O passado como acesso à longue durée admitia pouca ou
nenhuma transgressão. A Geografia, por essa e outras razões, vivia momentos de
agonia e crise enquanto a História, embalada pelo sucesso de nouveaux
problèmes, nouvelles approches e nouveaux objets da Escola dos Annales renovada
da geração de Jacques Le Goff e Pierre Nora, conhecia imenso regozijo. A
resposta das mais contundentes e permanentes a esse afã de memento mori do
saber geográfico e da Geografia veio com a aparição do controverso ‘La
Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre’ de Yves Lacoste.
Polêmico, contestado e sacralizado na França, esse pequeno
livro, desse já bastante conhecido geógrafo à época, ganhou o mundo e encantou
os mais diversos públicos em todas as direções cardeais. No Brasil, sua
absorção foi, seguro, imediata e ainda segue referência aos amantes de mundos e
destinos, espaços e fronteiras, cartas e territórios.
Entretanto, por dispersa e insondável motivação, ‘La
Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre’, de responsabilidade das
engajadas Éditions Maspero, de François Maspero – o mesmo que publicara anos
antes ‘Pau de arara, La violence militaire au Brésil’, instrumento de denúncia
da brutalidade da ditadura brasileira – jamais possuiu reedição. Sua travessia
do deserto, mesmo que menções e edições ao estrangeiro tenham seguido
constantes desde sua aparição, durou quase dois quartos de século. Trinta e
seis anos depois, em 2012, Yves Lacoste, agora detentor do Vautrin Lud – o
mesmo que esse brasileiro, baiano, de Brotas, saudoso Milton de Almeida Santos
(1926-2001), recebera em 1994 no Festival Internacional de Geografia de
Saint-Dié-des-Vosges – volta ao texto. Desse empenho resulta essa nova edição,
aumentada e comentada, de La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre,
que em muito merece ser relido, sobretudo por não-geógrafos.
Saída por La découverte de François Gèze, essa nova edição
ganha um imenso prefácio de Yves Lacoste e elucidativos comentários críticos e
autocríticos sobre possíveis atualidades dos argumentos expressos em cada um
dos seus dezessete curtos e longos capítulos.
A gestação original do livro se confunde, por evidência, com
a biografia do autor que, por sua vez, está ligada à renovação do saber
geográfico e da Geografia, na França e algures, nestes últimos quase cinquenta
anos. Nascido em 1929, no hospital militar de Fès, no Marrocos, Yves Lacoste –
que segue vivo e atuante nesses nossos idos do século 21 – teve como primeira e
permanente paixão a Geologia, ofício de seu pai, Jean Lacoste, geólogo da
confraria francesa de estudos e exploração de petróleo no protetorado
marroquino.
Em 1938, a família Lacoste se obriga a retornar à metrópole.
Jean Lacoste, enfermo, necessita de acompanhamento sanatorial. A partir de
1941, Yves Lacoste, com seus outros dois irmãos, conhece a orfandade paterna. A
morte de seu pai coincide com seu ingresso no liceu francês. Nesses primeiros
estudos, seu desempenho fora, por assim dizer, razoável. Nada de apreço por
Matemática. Algum pouco interesse por História. Nenhum grande entusiasmo pela
Geografia. Mesmo assim, sua ligação à Geologia lhe aproxima de Pierre George,
seu professor no secundário.
Passada essa fase, Lacoste acessa o Instituto de Geografia
da rue Saint-Jacques. Aí conhece e adere ao Partido Comunista Francês, do qual
Pierre George e muitos de seus professores faziam parte. Aí também conhece e se
apaixona por Camille Dujardin, com quem se casaria anos depois, e continua seu
amor da vida toda.
Licenciado em Geografia, segue ao Marrocos para completar
seus estudos. De volta à Paris e portador de um diploma de estudos superiores,
consegue nomeação ao cargo de professor secundário na Argélia. As experiências
em Argel o marcariam profundamente. Primeiro por tomar contato com a convulsão
dos movimentos de independência norte-africanos. Segundo por adentrar a obra de
Ibn Khaldoun – exímio historiador maghrebino do século 14 – que resultaria em
seu ‘Ibn Khaldoun, naissance de l'Histoire, passé du tiers monde’, de 1965.
A tensão política em Argel lhe impõe voltar à França. Em
Paris vira assistente de Pierre George no Instituto de Geografia. Mesmo assim,
mantém relações fraternais e políticas intensas com o Maghreb. Desse
envolvimento ganharia luz sua ‘Histoire du Maghreb’, de 1957. Por esse período,
Pierre George lhe propõe participar da coleção ‘Que sais-je?’. De seu esforço e
engenho, veio a público, em 1959, seu ‘Les pays sous-développés’. Esse pequeno
livro, quase fascículo, se transformou em sucesso mundial com tradução, muitas
sem autorização, em dezenas de línguas. Alguns anos depois, em 1965, no mesmo
diapasão, sairia seu ‘Géographie du sous-développement’.
O sucesso dessas duas obras fez com que Michel Arnaud,
diretor da Secretaria de Missões de Urbanismo e Habitação, lhe propusesse um
tour por Haute-Volta, atual Burkina Faso, sob alegação que Lacoste precisava
conhecer melhor a África Negra. Essa viagem, em 1966, ajudou a sofisticar ainda
mais as suas impressões sobre a diversidade do mundo em vias de
desenvolvimento.
Maio de 1968 marcou profundamente a sociedade francesa. A
reação juvenil e sindical compreendia negação ao general De Gaulle, à educação
tradicional e tradicionalista e aos valores do mundo burguês. O reflexo
imediato foi a reforma educacional. Nessa reforma o ministro da educação Edgar
Faure baixa portaria permitindo que professores, mesmo sem ter defendido tese
doutoral, acedessem à docência universitária. Nesse contexto, Yves Lacoste vai
nomeado professor de Geografia na Universidade de Vincennes. Na mesma leva,
seguem para essa nova aventura universitária francesa Michel Foucault, Gilles
Deleuze, Jean-François Lyotard, Hélène Cixous, François Châtelet dentre outros.
Nessa experiência de Vincennes, Lacoste foi diretamente
confrontado à impressão generalizada, sobretudo dos universitários
pretensamente mais politizados vindos da História e da Filosofia, de que a
Geografia era uma disciplina, de pretensão científica, amplamente reacionária.
Reacionária, sobretudo por silenciar diante dos movimentos políticos daquele
mundo contemporâneo.
Nessa lide, Lacoste reabilitou Élisée Reclus (1830-1905),
autor do monumental ‘Géographie universelle’ em 19 volumes. Dos mais
importantes geógrafos franceses, Reclus fora relegado ao ostracismo pelas ondas
de cientificização da Geografia dos séculos 19 e 20 que passaram a pretender
certa objetividade desse saber geográfico. Além do mais, Reclus, embora amigo de
Bakunin e Kropotkin, fizera críticas severas ao sacrossanto Karl Marx
(1818-1883).
Essa performance de Lacoste produziu diversos resultados.
Alguns positivos; outros nem tanto. O primeiro fator favorável foi convencer
muitos jovens da importância política e social do saber geográfico. Muitos
alunos de disciplinas irmãs abdicaram de seus cursos originais para se dedicar
à Geografia. O elemento claramente desagradável foi o esfriamento de sua
relação com Pierre George, seu mestre da vida inteira.
Geógrafo de imenso prestígio dentro e fora das fronteiras
francesas, Pierre George não viveu o maio de 1968 em Paris. Estava em missão no
México. Ao retomar suas funções na Sciences Po em outubro daquele ano, foi alvo
de contestação por parte dos estudantes que o consideravam expressão do passado
e, portanto, de tudo aquilo que as ruas denunciaram meses antes. Lacoste em
Vincennes virou o oposto de Pierre George em Paris.
Esses movimentos “modernosos” de Lacoste em Vincennes
levaram Pierre George a excluí-lo – ou melhor, não convidá-lo – ao projeto que
resultaria no ‘Dictionnaire de la géographie’, primeira edição de 1970, que
reuniu praticamente todos os seus discípulos. Esse resfriamento de relação
causou muito ressentimento e aborrecimento entre os dois. Tamanha tensão levou
Pierre George a se recusar a participar, dez anos depois, do júri de defesa da
tese de Yves Lacoste, seu orientando.
Para além desse doloroso mal-entendido, relativamente
resolvido no fim da vida de Pierre George quando ele e Lacoste voltaram a ter
relações relativamente urbanas e cordiais, o geógrafo de Vincennes, com pouco
mais de quarenta anos, um passado comunista somando a intensa convicção
política antiimperialista, avança em sua (re)politização da Geografia. Aos
poucos, vai (re)trazendo à discussão a expressão geopolítica.
Demonizada no após 1945 por ser entendida como manifestação
nazista, a geopolítica passou a ser indexada como prática de intenções
reacionárias. Parte importante de ‘La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la
guerre’ objetiva desfazer esse julgamento malfazejo. Mas antes de ‘La
Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre’, muitos ventos fariam girar os
moinhos da vida e da obra de Yves Lacoste.
Na primavera de 1972, a guerra do Vietnã ganha em
hostilidade. Enquanto o presidente Richard Nixon (1913-1994) e o secretário
Henri Kissinger avançaram em negociações com Mao Tsé-Tung na China, a US Air
Force bombardeava sem pudor o norte do Vietnã. Muitos desses bombardeios
visavam os diques do rio Vermelho. Consultado em Paris, Lacoste foi convocado a
Hanói e em seguida às regiões em sinistro. De retorno à França, fez publicar no
Le Monde de 16 de agosto de 1972 uma grande reportagem com explicações
geográficas e cartográficas sobre os bombardeios e suas consequências. Sua análise
girou mundo. Jornalistas e diplomatas de todas as partes passaram a requisitar
suas impressões. Nutrido dessa reputação, avançou na desdemonização da
geopolítica. Nesse empenho, empreendeu o início da aventura ‘Hérodote’ que
ganhou vida em 1976 e segue ativa, contemplando mais de 150 em 2014, como uma
das revistas mais longevas e consistentes da área.
O primeiro número de Hérodote – Géographie de la crise,
crise de la Géographie – aborda justamente os desassossegos da disciplina. Na
apresentação da revista e do empreendimento que ela visava preencher, Yves
Lacoste emprega, então, pela primeira vez a frase – La Géographie, ça sert,
d'bord, à faire la guerre – que daria título ao seu livro dos mais célebres.
Cioso de História, Lacoste sabia perfeitamente que a fórmula
era depositária de Louis XIV, que ainda no século XVII, pelos idos de 1671, fez
informar ao mundo que partia faire la guerre contra os holandeses. Não
convencido do impacto do sentido da expressão imiscuída em sua grande
apresentação do primeiro número de Hérodote, Lacoste decide alongar o ensaio e
impor como título uma frase. Frase que seu editor, François Maspero, retorquiu
de imediato “Ce n’est pas un titre!”.
Pouco a pouco, seja pelo sucesso da revista seja pelo
sucesso do livro, a expressão geopolítica foi voltando a figurar no vocabulário
francês e mundial jornalístico, acadêmico e diplomático. Quando tem lugar o
conflito entre o Vietnã e o Camboja em 1978 – na sequência seria a vez do
exército vermelho invadir o Afeganistão em 1979 –, André Fontaine, grande
conhecedor e analista do mundo do após 1945 e diretor do ‘Le Monde’, não teve
dúvidas em asseverar: “c’est de la géopolitique!”. Isso representou um avanço
imenso, em muito resultado do esforço pedagógico de Lacoste.
Geopolítica, estratagema de origem alemã, definiu o desejo
de potência e reconhecimento dessa nação que, após Bismarck, passou a querer
impor seu lugar ao sol e contar em definitivo hors fronteiras.
Contar para além fronteiras envolve, como ensina Carl von
Clausewitz (1780-1831), conhecer o mistério escondido depois colina. Jamais foi
tão urgente saber desvelar esse mistério. Jamais foi tão importante conhecer o
que existe além fronteiras. Jamais foi tão necessária a releitura desse
clássico, ‘La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre’, de Yves Lacoste.
Via - Carcará
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