Entrando no restaurante, o sujeito que não conheço me olha de um modo que não traduzo. Em outros tempos, seria um bom início de conversa. Puxaríamos assunto, fosse turista ou nativo falaríamos da velha Poços de Caldas, descobriríamos afinidades musicais, às vezes amigos comuns e raramente se falaria de política.
Agora, o clima é tenso. Fico imaginando que, a qualquer
momento, o sujeito virá em minha direção de dedo em riste, deblaterando contra
minhas posições políticas, me acusando de "petralha" e me obrigando a
bate-boca em público.
A direita saiu do armário, dirão os especialistas. Mais que
a direita, a intolerância.
Não apenas a direita troglodita, mas também uma nova direita
cheia de maneirismos, travestida de um humanismo de boutique, defensora das
grandes teses de igualdade apenas para o eixo Rio-Miami, para seus círculos
sociais, mas avalizando todos os ataques políticos aos inimigos e todas as
ameaças às políticas sociais que amparam
a plebe malcheirosa.
Ao contrário, os verdadeiros humanistas identificam a si
mesmo em cada ser humano, veem no próximo um pedaço da humanidade. Foi o que
levou o grande liberal conservador Sobral Pinto a defender Luiz Carlos Prestes.
Ao meu lado, a notável defensora dos direitos humanos me
explica o processo simples, e ao mesmo tempo desafiador, de entender a
vulnerabilidade do outro que não é igual a você. Difícil é entender a
vulnerabilidade de um outro com quem você não se identifica, até o ponto de não
existir mais o outro, mas uma única identidade humana. Isto é humanidade.
E me recomenda o poema de John Donne:
“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula
do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a
Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos
teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou
parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles
dobram por ti”.
Os liberais brasileiros de agora são tão superficiais quanto
os alicerces dos traillers da Florida, carregando convicções mutantes a caminho
da rodovia que conduza à última moda, com a mesma superficialidade dos que
querem ser “in” nas colunas sociais, nos programas de entrevista e na Academia.
Apresentavam-se como juristas de esquerda, quando era chic ser de esquerda.
Agora, se assumem ultraliberais de direita, porque é a nova moda. E o sistema
enaltece apenas a erudição que se adequa aos modismos.
Os trogloditas que saem pelas ruas expelindo fogo pelas
ventas apenas incomodam. É a direita falsamente sofisticada que mata, que
convalida a PEC 55, o desmonte de programas sociais, a destruição de cadeias
produtivas em nome de um conceito de modernidade, tão superficial quanto cruel.
Não é a direita dos conservadores convictos como Sobral
Pinto, que passou por cima de diferenças ideológicas e se pôs a defender as
vítimas do arbítrio. Ou dos construtores de Nação, de Campos a Bulhões, de Dias
Leite a Beltrão, de juristas com a convicção de Pedro Aleixo e Sobral,
construtores do país ou defensores das teses civilizatórias. Agora é uma
direita rentista, superficial, com juristas prenhes de maneirismos e escassos
de humanidade.
Me lembro de Manuel Bonfim descrevendo o Brasil do início do
século 20: os líricos fizeram a Abolição, a elite fez a Guerra do Paraguai.
O Brasil nunca foi uma sociedade pacífica, mas havia os
rituais preservados, as festas de fim de ano, as canções infantis, o aconchego
familiar. Desta vez, o ódio cultivado diuturnamente pela mídia, ao longo de
anos e anos, regando com fel as ervas daninhas da intolerância, que, crescendo,
conseguiram penetrar até nos círculos mais íntimos da brasilidade, contaminando
redes de amigos, laços familiares, ambientes sociais em geral.
Tudo isso passa pela minha cabeça quando, no restaurante,
percebo o sujeito me mirando e já me despertando instintos agressivos. Vou
tirar satisfações? Seria conferir a vitória final ao ódio.
E o Brasil é bem maior. O país que deu Caymmi, João,
Carlinhos e Jobim, Ary, Noel e Custódio, Gilberto Freire e Bonfim, Sérgio, Caio
e Florestan, que hoje dá Nicolelis, e
ontem deu Clodowaldo, que juntou Aziz e Lutz, sem rio Jordão e sem Gaza, Paulo
Freire e Josué, Milton e Carlos Chagas, Zé do Norte e Luiz Gonzaga, Chico e
Luiz Vieira, Edu, Capiba e Joubert, Celso Furtado e Ignácio, não pode se render
a esse simulacro de país, dos Marinhos e dos Frias, de Temer e Eliseu, do
intocável Padilha, e de um monte de
Zebedeus, de Meirelles e Ilan, de Gilmar e de Barroso , tão iguais e tão
diversos, um é prosa, o outro é verso, o
boquirroto e o centrado, o perverso e o bondoso, o escarrado e o sibilino, o
ostensivo e o medroso, um, Gilmar, outro, Barroso, jogando do mesmo lado,
hipotecando o destino
2016 não é o final, é o início. Há uma rapaziada cheia de
energia, na música, na vida e nas escolas, uma tomada de consciência alicerçada
nos mais autênticos valores nacionais, uma reconstrução renovada de princípios
de solidariedade, de luta contra o arbítrio, ainda que em um público mais
restrito, mas dotado da fortaleza dos cristãos nas catacumbas lutando contra a
barbárie.
Que em 2017 toda essa energia possa implodir as cidadelas do
obscurantismo, da intolerância, o pesado sentimento antinacional que tomou
conta das instituições. Do mesmo que a elite fazendeira descobriu o Brasil
profundo através da Semana de 22 e dos sons de Villa-Lobos, e a classe média
urbana descobriu o Brasil autêntico através dos cantores populares.
Viva o Brasil!
Por Luis Nassif no Jornal GGN
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