“A história aparece como tragédia e se repete como farsa”,
escreveu Karl Marx no livro “Dezoito Brumário de Louis Bonaparte”, em 1852.
Estudamos História para iluminar o entendimento do presente ou para nos servir
como guia a seguir no futuro desconhecido?
A heurística – a arte de inventar ou fazer descobertas –
mostra que as pessoas fazem seus julgamentos baseadas na similaridade entre
situações atuais e outras situações vividas ou protótipos daquelas situações.
Essa ligação heurística conduz-nos a acreditar que novo evento “parece igual” a
alguma experiência prévia e confundir “aparência” e “realidade”. Porém,
“semelhança com a verdade não é o mesmo que a verdade”…
Por exemplo, o populista de direita, Jânio Quadros, era
avesso a partidos. Elegeu-se como deputado estadual, deputado federal, prefeito
da capital paulista e governador estadual e presidente da República por
coalizões improvisadas, sem se ater a nenhuma agremiação, sem ligar para
nenhuma ideologia política. Confiava mais no instinto e no talento cênico.
Seus discursos giravam em torno de dois temas de eterno
apelo eleitoral: o combate à corrupção e a má qualidade da gestão pública. Ele
cultivava a imagem de administrador incorruptível, ou seja, o que o moralismo
inculcado como fosse a única “regra do jogo” a ser seguida por todos os
políticos. Há eleitor que só cobra isso.
Na campanha para presidente, Jânio se apresentou como o
candidato solitário contra a coligação de partidos poderosos, o defensor dos
interesses dos mais pobres: transporte coletivo, escolas, hospitais. Na prática
presidencial, obedecia apenas ao instinto populista, ocupando-se de assuntos
desproporcionais à importância do cargo que exercia. Não descentralizava o
Poder Executivo para se cuidar de “detalhes”.
Combinou iniciativas simpáticas à esquerda – como a
condecoração a Che Guevara – com medidas simpáticas aos conservadores
moralistas – como o aumento do horário de expediente do funcionalismo e a
proibição do lança-perfume, do desfile de maiô nos concursos de miss, da briga
de galos e das corridas de cavalos em dias úteis!
Ao renunciar, subitamente, imaginava ter cacife para pedir
um voto de confiança à sua permanência no Poder. No entanto, já tinha brigado
com quase todos os parlamentares e políticos aliados. Jânio sabia que Jango
Goulart, herdeiro do getulismo, seria inaceitável para a casta dos guerreiros.
Imaginou que os militares, os governadores e, principalmente, o povo, iriam às
ruas para chamá-lo de volta ao Palácio. Ele aceitaria, mas com a condição de
poder governar sem muita interferência do Congresso e dos partidos.
(In)felizmente, ninguém pediu que ele voltasse…
Diante do risco de guerra civil, políticos mais sensatos
trataram de costurar um acordo de conciliação: Jango assumiu, mas o poder da
Presidência foi diluído com a implantação do regime parlamentarista. O próprio
presidente rompeu o acordo no ano seguinte. Antecipou o plebiscito sobre o
sistema de governo, que só deveria ocorrer em 1965, e venceu facilmente. Trinta
anos depois (1993), o parlamentarismo foi novamente rejeitado em novo
plebiscito. O povo brasileiro não confia em parlamentares.
Depois de ficar isolado à direita e à esquerda, Jango
enveredou por uma desastrada estratégia populista no fim de seu período no
poder. Decidiu passar por cima da política convencional e falar diretamente ao
povo, prometendo lançar o governo na campanha pelas reformas de base: reforma
agrária, urbana, tributária, educacional, bancária, administrativa, a
estatização das refinarias de petróleo e o controle da remessa de lucro das
multinacionais. Buscava ocupar a liderança do movimento nacional-reformista.
Uma atitude conciliadora teria lhe permitido completar o
mandato? Provavelmente não, dados os ódios e ressentimentos da casta dos
militares a fermentar desde a Era de Getúlio Vargas. As famílias Goulart e
Vargas eram vizinhas e amigas em São Borja, no Rio Grande do Sul. Ao retornar à
Presidência pelo voto direto em 1951, Getúlio levou o jovem Goulart, então com
32 anos, para o governo. O critério brasileiro do Homem Cordial na escolha
afetiva de “alguém da cozinha do Palácio” para ser seu sucessor foi adotado por
Getúlio, assim como Lula o adotou na escolha da Dilma como sucessora. No
Brasil, segue-se a indicação de “cacique político” e não se adotam as “eleições
primárias” dentro dos partidos.
O vice-presidente em exercício, José Sarney, foi taxativo na
primeira reunião ministerial da Nova República, em março de 1985: “é proibido
gastar”. Ele leu o discurso que o presidente eleito indiretamente (contra Paulo
Maluf) pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves, ditara ao sobrinho Francisco
Dornelles, uma típica escolha de clã dos Neves. Indicava o que seria o
familismo do governo caso esse conservador não tivesse morrido.
Em 1989, havia três décadas que os eleitores brasileiros –
de outra geração que desconhecia o passado – não elegiam um presidente por voto
direto. O último fora Jânio Quadros, em 1960. Duas décadas de ditadura militar
e mais o impopular governo José Sarney, com a politicagem explícita do PMDB
oligárquico, a corrupção e a hiperinflação, ajudaram a reforçar a aversão
popular aos políticos mesquinhos e personalistas.
Collor se apresentou como um “estranho no ninho” da política
tradicional e “sem rabo preso” com os partidos. O candidato batia em Sarney e
corriola como o povo desejava. Escondeu que era herdeiro de uma dinastia
política da oligarquia alagoana – um típico playboy das “carteiradas” usuais
entre os “filhos do poder”. Collor desfraldou a bandeira do combate aos altos
salários de servidores públicos e criou sua persona política: “o caçador de
marajás”. Assustou o eleitor alienado com o suposto esquerdismo do PT e ganhou
a eleição contra Lula. O presidente corrupto teria provavelmente se safado se
as desavenças dentro do clã Collor não tivessem transbordado para a imprensa. E
não estivesse isolado no Congresso.
Estelionato Eleitoral, também conhecido como “giro
político”, é um conceito da Ciência Política utilizado para descrever os casos
de candidatos eleitos com uma plataforma ideológica que, após a eleição, adotam
um programa ideológico contrário. Um membro da casta dos sábios-intelectuais,
FHC o cometeu no início do segundo mandato, dando uma reviravolta na política
cambial e provocando um choque inflacionário a ser combatido com elevadíssima
taxa de juro para gozo dos rentistas e desemprego dos trabalhadores. O povo
ainda sofreu com o apagão elétrico, proveniente da ideologia neoliberal do não
planejamento estatal: “deixai fazer, deixai ir, deixai passar”…
Dilma, que compartilhava os valores da casta dos
sábios-tecnocratas – educação e especialização –, composta por administradores
e técnicos, transparecia também a presunção arrogante típica dos especialistas
face aos políticos profissionais: perdeu o apoio da maioria do Congresso. Errou
mais ao apelar para um membro da casta dos mercadores-financistas, como Joaquim
Levy, que provocam a instabilidade econômica e a elevação das desigualdades.
Lula compartilha com a casta dos trabalhadores-organizados o
espírito corporativista que exclui “os de fora” – e provoca ódio dos excluídos
politicamente. Estes atiçam a casta dos guerreiros-policiais com suas guerras
intermináveis por honra e vingança. A casta dos aristocratas do Poder
Judiciário, que ocupam cargos quase vitalícios, têm como valor supremo o
paternalismo protetor em relação ao povo imaturo. Eles cultivam a diferença e o
respeito mais a si mesmo do que à “justiça cega” não discriminativa.
As castas não só buscam o interesse próprio e a vantagem
econômica. Cada qual defende certa ordem moral, que procura impor às demais.
Quando não restringe seus domínios, a ordem vigente se torna menos inclusiva.
Então, as outras castas se realinham e golpeiam a casta hegemônica. No caso
recente, foi golpeada a aliança social-desenvolvimentista entre a casta dos
sábios-tecnocratas e a dos trabalhadores-organizados.
Errar é humano, repetir erro é estupidez. Segundo Kant, a
autonomia do indivíduo pressupõe a submissão da sua vontade à Razão, e não a
qualquer Moral reapresentada como farsa. Os eleitores brasileiros tiveram
oportunidades históricas de amadurecer, politicamente, ganhando autonomia, isto
é, não se deixando enganar e governar pelas farsas moralistas? O candidato
engambela, facilmente, os eleitores assumindo rótulo de não-político, gestor,
caçador de marajá, incorruptível. Para não se iludir, novamente, os eleitores
necessitam rever a história recente e se lembrar de quando eram felizes
(2003-2014)… E não sabiam.
*Fernando Nogueira da Costa - É professor titular do
IE-Unicamp. Autor de “Brasil dos Bancos” (Edusp, 2012), ex-vice-presidente da
Caixa Econômica Federal (2003-2007). É colunista do Brasil Debate
Via - Jornal GGN
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