“O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem” (Guimarães Rosa)
Hoje, 6 de Julho, milhares de conselheiros, usuários,
trabalhadores, estudantes e pesquisadores marcham rumo a Brasília em defesa do
Sistema Único de Saúde (SUS) e da Seguridade Social. Esta marcha foi precedida
de inúmeros debates, rodas de conversa, manifestações, escrachos ministeriais,
tuitaços, AbraSUS, moções em conselhos, gritos de guerra ecoando em congressos
e seminários, caminhadas, vigílias e ocupações. Todos em defesa do SUS.
Esta intensidade e variedade de gestos e a marcha à Brasília
remontam a dois momentos decisivos da construção do SUS: os debates e pressões
populares durante todo o processo Constituinte e as mobilizações conduzidas
pela plenária popular de Saúde e Conselho Nacional de Saúde de derrubada dos
vetos do então presidente Collor à Lei Orgânica do SUS. Em ambos vimos o que
também é imprescindível para este momento: a coragem para não ceder diante de
tantas medidas de restrição ao debate e à capacidade de trazer segmentos
importantes para a defesa do SUS. Sem ousadia e sozinhos, não resistiremos.
Não é pequeno nem pouco ousado o movimento do golpe à
democracia. Se para alguns o esforço golpista era apenas uma tentativa de
conquista de poder ou sobreviver ao processo de apuração sobre a promiscuidade
e o sistema de financiamento da atividade político partidária, esta ilusão não
se sustentou em uma semana. É muito mais que isso.
É um golpe sustentado por uma aliança
midiática-jurídica-parlamentar, com o objetivo explícito de destruir o conjunto
de direitos alcançados a partir da Constituição de 1988, reposicionar para a
subordinação o Brasil no mundo e criminalizar e destruir as organizações
políticas e partidárias que, com a sua luta e proposição de um projeto de
desenvolvimento, alavancaram as principais conquistas depois da redemocratização.
Não à toa foi um golpe em eleição indireta porque seria
inviável eleger um governo com essa plataforma depois dos anos de mudanças
políticas e sociais impulsionadas pelo início do governo Lula. E uma agenda que
buscou ser vitoriosa com a eleição de Collor nos anos 1990, sendo parcialmente
interrompida pelo impeachment com crime de responsabilidade comprovado e sem
qualquer contestação à época.
Teve um impulso importante durante os anos FHC, mas foi
interrompida de um lado pelo desastre social e econômico da sua própria
implantação e pela capacidade de resistência e construção de alternativa
política construída pelas forças políticas e sociais que levaram Lula à
Presidência em 2003 e interrompeu aquele movimento, inaugurando um novo ciclo
histórico de desenvolvimento do Brasil.
As forças políticas derrotadas tentaram explicitamente
retomar esta agenda em 2006, e de forma mais velada em 2010 e 2014. Apesar do
intenso apoio pela mesma aliança partidária-midiática-judiciária foram
derrotadas pelo povo que, ao perceber os riscos para as suas conquistas, optou
por derrotá-la. Esta aliança golpista aproveitou um momento de fragilidade
política das forças que conduziam o país, fruto dos seus sinais contrários de
como conduzir os impactos da crise econômica internacional na vida do país e do
questionamento ao atual sistema político brasileiro.
Desmontar o SUS é um dos pratos cheios do dia do golpe. A
necessidade de desmonte é necessária para a agenda golpista por vários motivos:
do ponto de vista econômico imediato, sufocá-lo financeiramente dialoga com as
iniciativas políticas de austeridade em todo o mundo e congela qualquer mudança
de justiça tributária no país para sustentá-lo financeiramente, o que é musica
para os ouvidos dos setores que pouco contribuem para o Estado brasileiro em um
país onde os impostos recaem sobre os trabalhadores e as atividades de consumo,
praticamente isentando o grande patrimônio, as grandes heranças e os dividendos
financeiros e repartição de lucro; já sobre o ponto de vista econômico de médio
prazo, sufocar e inviabilizar o SUS e suas capacidades regulatórias é abrir
campo para a voracidade de todos os segmentos privados que lidam, no dia a dia,
com a Saúde como mercadoria e não como direito; agora a respeito da visão política,
sufocar o SUS é destruir uma plataforma pública de surgimento, alimentação e
reprodução de uma infinidade de temas e atores políticos que polarizam a
sociedade.
Vários movimentos e coletivos sindicais, sociais, das
temáticas rurais, raciais, de gênero, de patologias e dos direitos humanos veem
na luta por uma SUS maior, com mais acesso e qualidade, o sentido de sua luta e
isso fez o país mais democrático e diverso. Destruir esta plataforma é decisivo
para a agenda conservadora, sobretudo parte expressiva da base parlamentar que
desencadeou o golpe e, agora, cobra a conta.
Por tudo isso, as forças democráticas e populares têm de
manter a resistência à esta agenda e buscar impedir o retrocesso na defesa do
SUS. Assim como em 2013, quando os cartazes relacionados à saúde sempre estavam
presentes, não pode existir ato de resistência que não explicite o ataque ao
SUS.
Toda vez que fomos ousados e corajosos vencemos as batalhas
em defesa da Saúde. Há três anos participei ativamente de uma delas que talvez
tenha provocado o debate mais intenso sobre o compromisso com a saúde dos mais
vulneráveis, que foi o lançamento do Programa Mais Médicos, em 2013.
Essa iniciativa foi essencial para estabelecer um novo
horizonte para atenção primária no país, decisiva para melhorar a qualidade de
vida de pelo menos 60 milhões de brasileiros, primordial para que se surgissem
oportunidades de formação médica e especialização na Residência para milhares
de jovens, de lá para cá. O debate sobre a formação em saúde e regulação profissional
nunca foi tão amplo. Todos nós sabemos que não existe o Programa Mais Médicos
sem SUS e que sua destruição e de todos os componentes citados acima
representam o prato principal do cardápio indigesto servido ao povo.
O apoio da população e de gestores municipais, de todos os
partidos, tem sido uma trava inicial para atitudes mais explícitas de
contestação ao programa, mas sabemos que há estratégias menos frontais de
destruição desta política. O mesmo poderia dizer sobre as políticas de Atenção
à Saúde integral das Mulheres, de Saúde Mental e LGBT, as sobremesas desse
cardápio.
A Marcha a Brasília hoje não é o fim, é mais um passo na
nossa capacidade de gerar e mobilizar resistência. Saudações a todos e todas
que têm coragem, pois não assistiremos quietos a esse banquete do golpismo!
Via - Blog do Miro
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