Os percalços do cientista político Carlos Pinho,
compartilhados neste texto, resumem as agruras de quem é obrigado a aceitar
empregos sem as proteções legais.
Os economistas que defendem a reforma trabalhista alegam que
o livre mercado aumenta a oferta de emprego e assegura o salário justo. Os
empresários reclamam da legislação trabalhista há décadas, mas a reclamação
aumentou muito depois do aumento dos salários e da queda do desemprego até
2014.
O salário mínimo real cresceu 70% entre 2004 e 2014, com
impacto na escala de salários (dada a maior formalização) e nas pensões e
aposentadorias. Além do seguro-desemprego, o conjunto de transferências sociais
foi ampliado, notadamente o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada
e o bônus salarial. A correlação de forças tornou-se favorável aos
trabalhadores, levando a aumentos do salário real e dos direitos trabalhistas.
A crítica é que o excesso de proteção das leis, dos fiscais
e da Justiça trabalhista, assim como o aumento do salário mínimo e da
formalização do emprego, prejudicaria os lucros e demoveria os empresários de
contratar. Com o fim da política de valorização do salário mínimo e a reforma
trabalhista, os lucros aumentariam e o emprego também.
O problema óbvio do argumento é que o desemprego caiu até
2014 enquanto os salários aumentaram. Como os trabalhadores tendem a gastar o
que ganham, seus salários são itens de custo para alguns empresários, mas fonte
de receita para outros. O que vale para uma empresa não vale para a
macroeconomia.
Quando uma empresa paga menos salários, por sua vez, a
demanda por bens e serviços vendidos por outros empresários diminui. Isto pode
aumentar a capacidade ociosa das empresas e, portanto, diminuir a necessidade de
investimentos. Quando os empresários investem menos, eles lucram menos como
classe e podem ter problemas para pagar suas dívidas com os bancos.
É por isso que o que parece bom para o empresário egoísta
não é necessariamente bom para os empresários como um todo. É também por isso
que os economistas que defendiam a queda de salários para assegurar uma rápida
recuperação em 2015 apenas mostravam seus parcos conhecimentos de economia e
seus preconceitos sociais.
Em outubro de 2015, Samuel Pessoa afirmou em debate que
“quanto mais os salários reais caírem, mais rápido e indolor o ajuste vai ser.
Em maio, junho, fiquei superfeliz porque as expectativas estavam mostrando uma
queda de salário real de 5%”.
John Maynard Keynes e Michal Kalecki mostraram na década de
1930 que a hipótese neoclássica de que a queda de salários gera mais empregos
não tem consistência teórica. Vários mostraram depois que não tem consistência
empírica. Para além da confusão entre micro e macroeconomia, há algo que
explique o fetiche dos empresários por salários menores?
Em um texto celebre de 1943, Kalecki argumentou que a
manutenção de uma situação de pleno emprego asseguraria altos lucros agregados
para os capitalistas, mas colocaria em risco a disciplina social ao aumentar o
poder de barganha dos trabalhadores e diminuir seu medo da demissão. Por isso,
contra a preservação do pleno emprego, os capitalistas tenderiam a se alinhar
aos rentistas e pressionar o governo para realizar políticas austeras que
levariam a uma recessão, enfatizando a desinflação de preços e salários.
Isso explica em boa medida porque o ministro Joaquim Levy
afirmou, em junho de 2015, que havia gente que não queria entrar mais no
mercado de trabalho, mas voltaria com a recessão a procurar emprego, o que
seria bom, pois “não existe crescimento sem aumento da oferta de trabalho.”
Como era a vida no mercado de trabalho entre 1990 e 2004,
quando o baixo crescimento pontuado por recessões gerou grande “aumento da
oferta de trabalho”? Com a palavra, o cientista político Carlos Pinho:
Sou nascido e criado na favela Rio das Pedras, no Rio de
Janeiro, filho de uma paraibana de Campina Grande. Trabalho desde os dez anos
de idade e estudei a vida inteira em escola pública. Trabalhei como boleiro de
tênis no Marina Barra Clube, fui cobrador de vãs, office-boy, lavador de pratos
em cozinha (fervendo) em Ipanema, faxineiro, atendente e recepcionista de casa
de festas. Meu último emprego antes de ser aprovado para o curso de Ciências
Sociais na UFRJ em 2004 após três tentativas.
Naquela época não havia cotas para estudantes de escolas
públicas e negros nem bolsas aos estudantes pobres. Como o curso era integral,
fiz um acordo com o proprietário da casa de festas, que me demitiu e me
contratou como freelancer, no segundo semestre de 2014. Trabalhava sábados,
domingos e feriados das oito e meia da manhã às onze da noite. Ganhava 60 reais
para trabalhar por 29 horas cada fim de semana.
Fiquei dois anos sem curtir o fim de semana para arcar com
os custos de ônibus e xerox de textos. O sonho de ingressar na universidade
pública era maior que tudo. A marmita eu levava de casa (e ainda levo). Mesmo
com esse “bico”, eu não tinha dinheiro para me deslocar. Até para pagar a
inscrição do rigoroso vestibular da UFRJ eu pedi emprestado.
Não vi outra saída a não ser pedir um aumento de ao menos 20
ou 30 reais para o dono da casa de festas. Ele me disse uma frase que jamais
saiu da minha cabeça: “Tem muita gente lá fora querendo fazer o que você faz,
por muito menos”. Sabia que era tratado quase como um escravo, mas não tinha
opção.
Ou melhor, tive: os recursos para apoio aos estudantes
pobres aumentaram em 2006. Com boas notas, consegui uma bolsa de monitoria no
laboratório de informática do IFCS. Como precisava, trabalhei até o quarto
período da faculdade na casa de festas, quando consegui uma bolsa de iniciação
científica no IPPUR/UFRJ. Também obtive uma bolsa na Divisão de Assistência ao
Estudante (DAE), o que me fez abandonar o “bico” na casa de festas e me dedicar
com mais calma e profundidade às incontáveis leituras.
Sem o apoio incondicional de minha amada mãe, Josefa dos
Santos, a Dona Zefinha, não estaria hoje no meu segundo pós-doutorado e próximo
do primeiro aniversário como Doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ (antigo
IUPERJ). Ela trabalhou como empregada doméstica para me criar com muito
sacrifício e dignidade.
Minha mãe teve seus direitos vilipendiados por patrões.
Durante os anos 1990, ela trabalhou como faxineira para uma estadunidense e
ganhava em média 30 reais por cada faxina, incluindo passagem. Durante as suas
crises de dores de coluna, ficava impossibilitada de trabalhar e, como
precisávamos da grana para comprar comida e pagar as contas, eu fazia a faxina
no lugar dela. Fiz isso umas três vezes. A patroa era inflexível, avarenta e
não dava aumento. Um amigo de minha mãe, morador da Cidade de Deus, trabalhou
para ela por mais de 20 anos e não recebeu quaisquer direitos trabalhistas,
pois a patroa viajou e não voltou mais.
Foi uma luta imensa para minha mãe se aposentar com salário
mínimo. Como não tinha o costume de olhar a carteira de trabalho, a advogada a
que recorremos descobriu que as “casas de família”, as redes de hotéis e uma
empresa vendedora de automóveis em que minha mãe trabalhou violaram os seus
diretos, reduzindo pela metade (ou muito menos) os anos efetivamente
trabalhados. Ela trabalhou para um ator global por um ano e seis meses. Ele
“prendeu” sua carteira e, quando a demitiu, a entregou assinada contendo somente
um mês de serviço. Ela quase não se aposentou, tendo em vista as inúmeras
depreciações de seus direitos. Após mais de dois anos de luta, enfim se
aposentou.
Não tenho nada a acrescentar ao que escreveu meu colega
Carlos Pinho. Tirem suas próprias conclusões sobre porque associações de
empresários, economistas neoliberais, o Jornal Nacional e os editoriais dos
jornalões defendem as reformas trabalhista e da previdência.
*Carlos Pinho é doutor em Ciência Política pelo Instituto de
Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IESP/UERJ), ex-IUPERJ e pós-doutorando no Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT/PPED),
sediado no IESP/UERJ
* Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor associado do
Instituto de Economia da Unicamp
Fonte: Carta Capital
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