Para entender a figura do político, é preciso conhecer
Andrea Neves, a irmã do senador, presa na semana passada.
Esqueça por um momento o espetáculo grotesco: um senador da
República, presidente de um dos maiores e mais importantes partidos do país, já
formalmente investigado pela maior operação anticorrupção do Brasil, se
encontra em um hotel de luxo com um megaempresário e combina com ele o
pagamento de uma propina de R$ 2 milhões. Na ação, o senador age em família,
ajudado pela irmã e por um primo. Antes de encerrar as tratativas com uma frase
lapidar – “isso vai me dar uma ajuda do caralho” –, o senador diz ao
empresário, entre risadas, que mandaria matar o primo, encarregado de recolher
a propina, caso este um dia resolvesse fazer delação premiada. O dinheiro,
embalado em maços, é enfim entregue em malas ao tal primo, e o destino final da
bolada são os cofres da empresa da família de outro senador, um político de
péssima fama (quatro anos antes, o helicóptero de sua família, registrado em
nome de uma pessoa jurídica, havia sido apreendido com 445 quilos de pasta de
cocaína).
Esqueça tudo isso só por um momento. Não falaremos aqui do
Aécio Neves que a grande maioria do público que se informa pelo noticiário das
TVs, dos jornais, das rádios e da internet conhece há apenas cinco dias. O que
nos interessa é o outro Aécio, aquele que, em 32 anos de vida pública, foi
“vendido” pela quase totalidade da mídia como um político honesto, moderno,
“diferente” (no bom sentido) e até mesmo encantador.
Claro que é importante conhecer o “novo” Aécio que aparece
agora dirigindo megalicitações, pegando propina, tentando bloquear as
investigações da Lava Jato. Mas é igualmente fundamental entender o processo
que garantiu três décadas de blindagem ao “antigo” Aécio. É preciso esmiuçar a
armação que fez com que a grande maioria do público consumisse um político
holograma, uma mentira.
Para compreender esse fantástico case de construção de
imagem, é preciso jogar luz em uma personagem que, no sentido inverso ao de
Aécio, passou essas últimas três décadas nas sombras: Andrea Neves, a irmã do
senador que foi presa na semana passada suspeita de participar da operação de
pagamento de propina descrita no início deste texto.
Tancredo Neves, com os netos, Andrea e Aécio Neves, em
Cláudio, Minas Gerais (1984). (Foto: Divulgação/Flickr aecioneves).
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Aécio saiu do episódio com um enorme potencial eleitoral. Um
mês depois da morte do avô, ele começou a faturar seu prêmio ao ser nomeado
diretor de Loterias da Caixa Econômica Federal por seu primo Francisco
Dornelles, então ministro da Fazenda do governo José Sarney (1985-1990). Daí
ele não parou mais – no ano seguinte, Aécio conquistou uma cadeira na Câmara
dos Deputados. Novo, inexperiente na política, ele era uma espécie de mascote
do Congresso.
Andrea Neves entrou em cena no princípio da década de 1990
e, partindo de um início promissor, começou a transformar o irmão em um Robocop
da política nacional. Seu objetivo: moldar a imagem de Aécio como o mocinho da
fita e, sobretudo, blindá-lo na mídia não apenas contra possíveis ataques, mas
também contra a mais singela das críticas.
Quando o irmão gastava energia pegando onda nas praias no
Rio de Janeiro, Andrea já se revelava um animal político.
Se Aécio era inexperiente e pouco afeito às coisas da política,
o mesmo não podia ser dito em relação a Andrea. Um ano e 23 dias mais velha que
o irmão, ela era a verdadeira herdeira das artimanhas de Tancredo. Desde muito
jovem, no alvorecer dos anos 1980, quando o irmão gastava energia pegando onda
nas praias no Rio de Janeiro, Andrea já se revelava um animal político – seu
début se dera na fundação do PT fluminense, da qual participara. Formada em
jornalismo pela PUC do Rio, ela gostava de discutir, conchavar, compor. Amava
esse jogo e era muito boa no que fazia.
Em meados da década de 1990, Andrea já era a principal
mentora do irmão. Foi quando uma segunda tragédia familiar catapultou a
carreira de Aécio: a morte prematura, por infarto, aos 48 anos de idade, do
deputado Luiz Eduardo Magalhães (PFL-BA), filho do todo-poderoso senador
Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA). Habilidoso, carismático e afinado com os
interesses do grande capital, o filho de ACM era a principal aposta política do
establishment. Na toada em que ele vinha (três mandatos consecutivos como
deputado federal, um mandato bem-sucedido como presidente da Câmara e, logo
adiante, uma barbada que o elegeria governador da Bahia), Luiz Eduardo haveria
de ser presidente da República, muitos pensavam. A morte, contudo, mais uma vez
bloqueou o acesso à rampa do Palácio do Planalto.
Com o desaparecimento de Luiz Eduardo Magalhães, Aécio se
viu no posto de reserva estratégica do establishment. É bem verdade que, nos
campos de centro-direita e direita, ele não era o primeiro da fila. Havia
Fernando Henrique Cardoso, presidente em primeiro mandato, então com 66 anos, e
outros nomes que ainda seriam testados, como José Serra, 56 anos, e Geraldo
Alckmin, 45. Mas, aos 38 anos de idade recém-completados, Aécio podia não ser o
amanhã, mas estava escrito em algum lugar que ele seria o depois de amanhã.
Bastava fazer uma conta de padaria para ver a potencialidade daquele jovem
político. Se FHC fosse reeleito em 1998, como de fato o foi, e o status quo
gastasse as três eleições presidenciais seguintes apostando em nomes mais
óbvios, Aécio poderia ser jogado no tabuleiro político principal na eleição de
2014. Se perdesse, como de fato perdeu, teria ainda 2018, 2022 e, quando seria
então um jovem senhor de 66 anos, 2026.
Posse de Aécio Neves após ser reeleito governador de Minas
(2007). (Foto: Eugênio Sávio).
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Andrea guiou o irmão no trajeto luminoso que fez dele
presidente da Câmara dos Deputados (2001-2), governador de Minas por dois
mandatos (2003-10), senador (a partir de 2011) e candidato a presidente da
República, em 2014. Andrea liderava pessoalmente a articulação com alguns dos
maiores empresários do país e autoridades do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.
Em alguns casos, como mostram agora as gravações feitas por Joesley Batista,
sócio do grupo JBS, ela também levantava recursos para Aécio. Em outros,
negociava apoio em troca de apoio. Assim, trabalhando como uma formiga enquanto
Aécio bancava a cigarra, ela edificou uma estrutura política e financeira
poderosa em torno do irmão.
Em grande medida planejada, criada e gerenciada por Andrea,
a couraça que protegia Aécio o fez flanar liso durante três décadas. As
nebulosas conexões de Aécio com empresas públicas de números superlativos (como
Furnas), as suspeitas de envolvimento com obras superfaturadas (como as do
estádio do Mineirão) e a proximidade com corruptos notórios (como o operador
financeiro Marcos Valério) não eram assunto de interesse das autoridades. Não
havia delegado, promotor ou juiz que lhe criasse problemas. Na grande mídia,
por sua vez, salvo raríssimas e honrosas exceções, Aécio era retratado com um
homem sem máculas.
Aécio Neves, Ronaldo e Luciano Huck. (Foto: Foto: Omar
Freire/Imprensa MG)
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Modernizada era a chave da propaganda.
Em seu plantão permanente para blindar o irmão, Andrea
vigiava desde uma pequena rádio do interior até o Google. Para isso, construiu
uma musculosa estrutura de comunicação/imagem/imprensa que chefiava com rigor
marcial.
Não raro, a fixação de Andrea em plastificar a imagem do
irmão conduzia a exageros. Em 2011, por exemplo, em mais um de seus dias de
cigarra, Aécio levou um tombo de um cavalo. Nada que pudesse comprometer a
imagem do senador, mas ainda assim Andrea queria evitar a piada pronta: Aécio
caiu do cavalo. A assessoria do senador divulgou então uma nota meticulosamente
construída: “O senador Aécio Neves sofreu um pequeno acidente quando montava a
cavalo”. Ou seja, o senador sempre estivera em cima da montaria.
Aécio Neves após cair de cavalo e fraturar costelas e
clavícula. (Foto: Assessoria de Imprensa).
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No mesmo ano, aconteceu outro imprevisto, desta vez mais
grave. Em uma madrugada de domingo, no Rio de Janeiro, Aécio foi pego em uma
blitz da Lei Seca e se recusou a fazer o teste do bafômetro. Mais uma vez
Andrea entrou em cena para abafar o caso. Não havia apenas uma questão delicada
em jogo (Aécio havia bebido antes de dirigir?). Quando foi pego na blitz, o
senador guiava um dos carros de luxo (Land Rover) da frota de uma rádio da qual
ele era sócio. Havia mais: naquele fim de semana, Aécio viajara ao Rio nas asas
do jato Learjet prefixo GAF, que pertencia a uma empresa que tinha como sócio o
presidente da Codemig (Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais),
Oswaldo da Costa Borges Filho.
Cidade Administrativa de Minas Gerais, que teria processos
de licitação fraudados. (Foto: Renato Cobucci/Imprensa-MG).
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Durante anos, o caso dormiu em berço esplêndido nas gavetas
das grandes redações do país. Você não ficou sabendo se Aécio havia bebido
naquela noite, assim como não ficou sabendo nada sobre a rádio, muito menos
sobre o avião. Nesses seis anos, houve tempo suficiente para investigar as
relações de Aécio com Borges da Costa Filho, mas curiosamente também nenhum
grande jornal, revista ou TV se interessou pela história. Os laços que uniam
ambos só começaram a vir à tona neste ano, quando Marcelo Odebrecht afirmou, em
delação premiada, que, mesmo antes de a licitação da Cidade Administrativa ser
oficializada, a obra havia sido repartida entre um grupo de megaempreiteiras,
entre elas, a Odebrecht. Segundo contou Marcelo Odebrecht, parte da propina, de
3% do valor da obra, foi paga em dinheiro a Borges da Costa Filho.
Ainda em 2011, em meu blog, fiz vários posts sobre o
Bafometrogate. Levantei informações sobre a recusa de Aécio em fazer o teste do
bafômetro, sobre a rádio e sua frota de carros de luxo, sobre o jatinho e sobre
as relações turvas de Aécio com Borges da Costa Filho. Aécio nunca respondeu de
forma objetiva às questões por mim levantadas. Meu blog, por sua vez, começou a
ser alvo de uma guerrilha de trolls, com uso agressivo de robôs, comandada pela
militância do PSDB mineiro.
A blindagem da mídia gerenciada por Andrea produziu um
político artificial com índices oficiais de aprovação dignos de um Saddam
Hussein, chegando à casa dos 90%.
Por cima, tudo estava dominado. Mas, por baixo, havia quem
teimasse em revelar a verdade. Isso aconteceu pela primeira vez de maneira mais
efetiva em 2006, quando o rei foi colocado a nu por um estudante de graduação
de jornalismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Naquele ano,
cumprindo a obrigação acadêmica de apresentar um trabalho final de conclusão do
curso, Marcelo Baêta se aventurou a fazer um documentário em vídeo sobre as
relações de Aécio com a imprensa. Tendo Andrea Neves como personagem principal,
o trabalho (Liberdade, essa palavra) escancarou o esquema de manipulação da
mídia para proteger Aécio. Baêta conseguiu entrevistar jornalistas – inclusive
um ex-diretor da TV Globo Minas – que diziam ter sido perseguidos e/ou
demitidos por ousar divulgar informações que não eram do interesse de Andrea.
Coube, portanto, a um estudante de jornalismo mostrar que a
mídia estava amordaçada. O documentário, claro, durante anos foi solenemente
ignorado pela grande mídia. E Baêta depois sofreria na pele sua cota de
repressão.
Em Minas, até as palmeiras imperiais da Praça da Liberdade
sabiam que era um risco para os jornalistas desagradar a família Neves.
Em Minas, até as palmeiras imperiais da Praça da Liberdade
sabiam que era um risco para os jornalistas desagradar a família Neves. A lista
de repórteres e editores demitidos ou perseguidos é grande, e o clima de
terror, verdade seja dita, acabou por produzir uma nefasta cultura de
autocensura entre os profissionais mineiros. A blindagem comandada por Andrea
era tão eficaz que a própria Andrea rarissimamente era notícia. Se Aécio
tivesse sido eleito presidente da República em 2014, o que quase aconteceu, uma
das figuras mais importantes de seu governo seria uma desconhecida da quase
totalidade da população. Sem exagero, seria o mesmo que FHC ser eleito sem que
ninguém soubesse da existência de seu fiel escudeiro Sérgio Motta ou como se
Lula chegasse ao Planalto sem que o público tivesse ouvido falar em José
Dirceu. Andrea inventou um Aécio teflon e ainda por cima cobriu-se com um manto
de invisibilidade.
No ano passado, contudo, o escudo começou a falhar. No
início do governo Michel Temer, em uma conversa gravada com o então ministro do
Planejamento, Romero Jucá, em que discutiam uma forma de paralisar as
investigações da Lava Jato, o ex-senador do PSDB Sérgio Machado disse duas
frases que entrariam para a história: “quem não conhece o esquema do Aécio?” e
“o primeiro a ser comido vai ser o Aécio”. Para a grande maioria dos 51.041.155
eleitores do político mineiro, foi um susto. Aécio? Impossível!
Meses depois, Benedito Jr., ex-presidente da Odebrecht,
contou em depoimento ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que Aécio recebera
dinheiro sujo na campanha eleitoral de 2014, inclusive por meio de contratos de
prestação de serviço forjados com o marqueteiro Paulo Vasconcelos, parceiro de
Andrea Neves na construção da imagem do político mineiro. O testemunho que
incriminou Aécio foi dado no processo aberto pelo próprio PSDB para questionar
os gastos de campanha da chapa Dilma-Temer. O que fez Aécio? Apesar de o
conteúdo das declarações já ter sido tornado público pela imprensa, ele pediu
ao TSE para cobrir com uma tarja preta as menções a seu nome no depoimento, o
que lhe foi concedido.
A blindagem estava comprometida, mas Andrea e seu irmão
preferiam agir com um avestruz que enterra a cabeça na terra.
Para aqueles que nada sabiam, bem-vindos à Matrix.
Edição: The Intercept Brasil
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