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terça-feira, 8 de novembro de 2016

As raízes cearenses da Guerra de Canudos, 120 anos depois

Há 120 anos, acontecia o estopim para um dos conflitos mais sangrentos da história brasileira. A Guerra de Canudos tem suas raízes fincadas em Quixeramobim, cidade natal do beato e líder Antônio Conselheiro.

Casa onde morou a família Maciel, de Antonio Conselheiro

Por Domitila Andrade, do jornal O Povo

Foi promessa e necessidade. A igreja maior, nunca concluída, abrigaria a multidão de fiéis quepassava de 20 mil, em Belo Monte. A madeira paga e encomendada em Juazeiro da Bahia não chegou ao destino, e o ajuntamento para ir buscá-la fez correr como pólvora o falatório: os conselheiristas iriam invadir Juazeiro. Ou nem iam, mas, até que se explicasse, já havia sido pedida a presença da tropa militar. O embate em Uauá, num dia 7 de um décimo primeiro mês, há 120 anos, inaugurou a guerra, a de Canudos, e principiou a resistência sertaneja sobreposta pelo massacre. Foi o estopim, mas não foi motivo único. O desenrolar das birras de Igreja, coronelismo e Estado com Antônio Conselheiro, o beato dito louco, já contava mais de um par de décadas. E as raízes se fincam 700 km distantes do arraial.

Rebento de Quixeramobim, no Sertão Central cearense, o peregrino nasceu Antônio Vicente Mendes Maciel, em 13 de março de 1830 na casa que ainda hoje segue de pé no Centro da Cidade. Muito se fala que, da terra natal, Antônio só carregou fracasso e tragédia. Mas, vivendo em Quixeramobim até os 27 anos e no Estado até os 43, Antônio se construiu como beato ainda pelas veredas do Ceará.

A religiosidade perene na trajetória tem princípio quando o pai, Vicente Mendes Maciel, quis o filho ordenado padre. “Por um determinado tempo ele se vocaciona para isso, estuda latim, tem contato com língua estrangeira”, reconta Bruno Paulino, escritor e professor que leciona em Quixeramobim disciplina específica sobre a vida do filho da terra.

Outro ponto dessa aproximação com a fé se dá com Padre Ibiapina, como detalha Ailton Brasil, historiador e presidente do Instituto do Patrimônio Histórico, Cultural e Natural de Quixeramobim (Iphanaq). “Os Macieis (família de Antônio) têm historicamente um conflito com os Araújos, e Antônio cresce vendo como a justiça funcionava, sempre a favor dos Araújos, o lado abastado da peleja. Quem faz alguma justiça pela família dele é o padre Ibiapina, que foi o primeiro juiz de paz daqui”, aponta. Um novo encontro com a missão do padre e seu catolicismo de ação se dá mais a frente, no Cariri, quando Antônio já havia se encontrado com sua sina.

Endividado depois de tentar seguir com os negócios do pai falecido, o recém-casado Antônio deixa Quixeramobim. O fracasso nos negócios já mostrava, para Bruno, sinal do humanista que Antônio era. 

“Quixeramobim o formou intelectualmente e foi também a cidade que o expulsou. A história oficial tenta colocar como um fracasso. Eu acredito que isso mostrava que ele estava destinado a voos mais altos. Conselheiro foi professor, rábula (advogado prático), arquiteto, líder, um pacifista, um homem de múltiplas facetas que ensinava o conviver com o outro e com a terra”.

A pecha que recai sobre o homem, na tentativa de diminuir sua história, era a de corno. A narrativa imprecisa da traição de Brasilina, a esposa, coloca Antônio em desespero. Era dali que partia o segundo infortúnio, a loucura, a ele imputada como que para enfraquecer a obstinação.

“Essas pechas servem para esvaziar o ideal que ele representava”, afirma o psicanalista Osvaldo Costa Martins, um dos fundadores, na Quixeramobim de 1990, do Movimento Antônio Conselheiro. Apontando a loucura como “categoria social, que serve a todo tipo de estigmatização”, Osvaldo, analisou os manuscritos deixados pelo Conselheiro, e pondera que não tem elementos para diagnosticá-lo. “Ele era tido pela psiquiatria da época como monomaníaco religioso. Mas no texto do Conselheiro não tem elementos que apontam para um delírio, uma paranoia. É um texto muito bem construído, bem argumentado”, acredita.

Apartado da esposa, outra mulher teve, talvez, mãos mais fortes na moldura do beato de vestes azuis, profusão de pelos e pés descalços. Longe de Brasilina e dos dois filhos cujos destinos se perderam, Antônio se enlaça, em Santa Quitéria, com uma mística e tem com ela Joaquim Aprígio, o rebento que a luz da história alumiou. Joana Imaginária talhava santos. Santo também foi alcunha que seguiu Antônio.

Legado

Pedir no Centro da Cidade informações de onde fica a casa onde nasceu Antônio Conselheiro é receber informações imprecisas. Além da casa, o bairro abriga o Instituto Antônio Conselheiro, que guarda informações do peregrino e carece de cuidados. Ao lado dele, o único ponto comercial que carrega o nome do andarilho. Para quem leva tenta sustentar viva a memória do beato, esses são sinais de que os rótulos nele fixados ainda estão presentes e os ideais defendidos por Antônio seguem perigosos até hoje.

A família Maciel traz um orgulho quase tímido do parente distante. O pastor Roberto Maciel, da quarta geração posterior a Antônio, se ressente da falta histórica de apoio à família. Ele mesmo tem se inteirado da trajetória de Antônio pelas heranças do tio Marcílio Maciel. Falecido em 2015, Marcílio sabia de cor os caminhos do Conselheiro e queria que Antônio não fosse esquecido.

“Ele nos ensinou que a gente tinha o dever de repassar os ideais de Antônio. Quando morreu me deixou a missão de ir conhecer Canudos. Eu me apaixonei, foi uma das maiores emoções da minha vida”.

Conselheiro só passou a ser tema de pesquisa na década de 90, com o Movimento Antônio Conselheiro. Hoje, Quixeramobim tem o evento Conselheiro Vivo, que envolve escolas e movimentos sociais e rememora a vida do beato, no dia 13 de março, feriado na Cidade. Uma procissão também vai a Canudos anualmente em outubro. Para Neto Camorim, historiador que todo ano viaja a Canudos e perfaz os caminhos do Conselheiro na Bahia, Antônio deixa como legado “a resistência, a determinação, a teimosia”. “Ele era à frente do seu tempo e dá uma lição para as políticas públicas de que uma sociedade comunitária, num sertão seco, é viável”, diz. Bruno Paulino complementa: “Conselheiro ensina que o sertão é possível”.

Signo de tragédia

A peleja de Araújos e Macieis (esses acusados de roubo de cabeças de rês por aqueles), com baixas de ambos os lados; e a morte da mãe, Maria Joaquina, quando Antônio só contava quatro anos, principiam a vida marcada pelo signo da tragédia. Antônio cresce sendo maltratado pela madrasta; endivida-se ao assumir os negócios do pai; é traído por Brasilina; e já na Bahia é preso e trazido para o Ceará, acusado injustamente dos assassinatos de mãe e esposa. No percurso, Antônio sofre, passivamente, uma série de torturas.

Uma casa amarela toda azul

A casa de cinco portas, preparada para um comércio, construída na rua principal de Campo Maior, como era chamada a vila de Quixeramobim, segue de pé até hoje. Erguida pelo pai de Antônio Conselheiro, Vicente Mendes Maciel, no século XIX, a casa hoje amarela e vermelha já abrigou a família do músico e arquiteto Fausto Nilo. É sobre ela a música “Casa Toda Azul”, dizeres escritos na fachada, quando a casa de paredes largas e pé direito alto foi, além de residência, loja de tecido do pai do arquiteto, também de nome Fausto Nilo. O arquiteto conta que, depois da família Maciel, a casa passou para posse do coronel João Paulino, que a vendeu para Luiz Pereira, e depois para seu avô Benjamin Frutuoso. Hoje, vendida ao Governo do Estado, a casa espera restauro e a conclusão do tombamento.

Cronologia da Guerra de Canudos

1893

Neste ano, conselheiristas, no município de Tucano, enfrentaram e venceram um destacamento da Polícia Baiana. Este foi o primeiro conflito armado do grupo. O motivo foi a imposição de impostos. Nos primeiros dias de junho, Conselheiro e seus acompanhantes alcançaram o povoado de Canudos que tomou a denominação de Belo Monte. Começava uma nova era na vida sertaneja e nacional.

1896

Antônio Conselheiro encomendou madeira para a capela em construção com comerciantes juazeirenses. Sem a entrega, espalhou-se em Juazeiro, que os jagunços iriam buscar o material. Temendo uma invasão, preparou-se uma tropa de linha de 120 homens, comandada pelo tenente Pires Ferreira, que resolveu marchar contra Canudos e foi surpreendido, no povoado de Uauá, pela jagunçada. Estava iniciada, em 7 de novembro, a Guerra de Canudos.

1897

A expedição de Febrônio de Brito, a segunda, sofreu violento ataque dos jagunços e precisou recuar, no lugar conhecido por Taboleirinhos de Canudos.
O coronel Antônio Moreira César foi nomeado comandante da terceira expedição, formada por mais de 1,2 mil homens. A espetacular expedição foi desbaratada em março, vitimando seu famoso chefe, o Corta-Cabeças. A terceira expedição saiu de Canudos derrotada e deixou as armas necessárias à resistência.

A quarta expedição, com mais de 10 mil homens, foi dividida em duas colunas, partindo uma de Monte Santo e a outra de Aracaju na direção do Belo Monte, que resistiu durante alguns meses causando grandes perdas aos militares. Os ataques iniciados em junho somente em outubro dariam a vitória às armas republicanas.

O Conselheiro morreu em 22 de setembro, de disenteria, estilhaços de granada ou encantamento. O povoado foi dominado em 5 de outubro, com a queima do arraial e a dizimação de grande parte dos mais de 20 mil moradores.

O cadáver de Antônio Conselheiro, sepultado na casa em que morava, foi encontrado em 6 de outubro. Sua cabeça foi levada para Salvador para ser estudada por uma mestre da Medicina Legal, Nina Rodrigues, que concluiu se tratar de cérebro normal.

( Escritos do Historiador José Calasans)

 Fonte: O Povo

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