Em tempos de austeridade fiscal e recessão democrática no
Brasil, tem sido recorrente destacar os problemas que toda esta crise política,
econômica e moral delegam às políticas sociais brasileiras. Esta reflexão é
necessária e legítima.
Por Letícia Bona Travagin, no site Brasil Debate:
No entanto, insisto em lembrar que a erosão das
políticas sociais e especialmente da saúde pública, tema ao qual me dedico, não
é nova, passageira ou resultado imediato de “descontrole fiscal”. O desmonte do
Sistema Único de Saúde é um projeto privatista deliberado, que ocorre
persistentemente desde 1990, com o respaldo do Estado brasileiro.
O estudo da economia política do Welfare State e do
neoliberalismo esclarece que o processo de desmonte da saúde pública brasileira
está inserido no processo global de ataques à Seguridade Social, promovido pela
retórica neoliberal hegemônica desde 1980.
Desde então, as políticas social-democratas que passavam
pela atuação do Estado como indutor do emprego, do investimento e da
minimização dos riscos sociais, são tidas como excesso, assistencialismo,
populismo e irresponsabilidade fiscal. Desta forma, o neoliberalismo impôs uma
disputa ideológica e de recursos financeiros entre Estado e mercado, que se
converteu em captura do setor público pelo privado.
Este processo tende a ser mais ou menos agressivo de acordo
com a articulação do setor privado e sua influência na economia. Quando se
trata do segmento de saúde no Brasil, o mercado é o rei.
A história da saúde no Brasil é privatista. O SUS foi
concebido no processo de democratização do país após a ditadura militar,
justamente em resposta a um modelo de saúde privatista e excludente, porque era
baseado na compra de serviços privados pelo Estado e no vínculo previdenciário.
O que chamamos de “medicina previdenciária” começou a ser
construída nos anos 30, mas tomou sua forma mais sólida durante o regime
militar sob gestão do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência
Social (Inamps), quando a saúde pública foi literalmente relegada.
O esquema médico-previdenciário não teve fim apenas devido à
crise econômica dos anos 1980 e às inúmeras denúncias de fraude. Ele foi
superado pela luta política democrática na qual se envolveu o movimento
sanitarista. Uma luta que desafiou os interesses do setor privado de saúde,
pela construção de um sistema universal, público e gratuito, baseado na
concepção ampliada da saúde. Os sanitaristas eram uma caixa de ressonância das
demandas de uma sociedade exausta e, naquele período, politicamente
esclarecida.
No entanto, o segmento privado de serviços de saúde,
fortalecido e articulado, não precisou de muito tempo para contornar este
“obstáculo”. Bastava um governo simpático aos interesses privados para que o
SUS fosse desmantelado antes de ser executado. A “Constituição Cidadã”,
promulgada em 1988, já sofreu seus primeiros golpes em 1990.
O governo Collor abraçou aquela retórica neoliberal
mencionada acima e impôs as primeiras restrições à implantação do SUS: foram 26
vetos na Lei Orgânica da Saúde, atacando itens relativos ao orçamento e à
participação social, além da nomeação no mínimo estranha da presidência do
Inamps para executar o processo de descentralização que levaria ao SUS (através
da NOB nº 1). O impeachment não barrou o processo. Itamar Franco retirou do SUS
o direito de receber recursos do Fundo de Previdência e Assistência Social
(FPAS).
O governo de FHC trouxe as maiores dificuldades à saúde
pública, e isso se relaciona mais uma vez com a retórica liberal. A
reestruturação macroeconômica do país, com vistas à estabilidade monetária (metas
de superávit, metas de inflação e câmbio flutuante) conflita com a implantação
das políticas sociais ao limitar austeramente os gastos públicos, sobretudo os
gastos sociais.
A Reforma Gerencial do Estado de 1995 serviu aos propósitos
de redução do aparato estatal e delegação de serviços públicos ao setor
privado, por meio das Organizações Sociais (OS), perniciosas no caso da saúde
pública.
Lembro que o Banco Mundial empenhava uma força considerável
em disseminar este discurso aos países subdesenvolvidos, nos anos 1990. O Banco
dedicou publicações à questão da saúde, recomendando a focalização da
assistência pública nos pobres, contenção de gastos, restrição do sistema à
atenção primária e, sobretudo, o incentivo ao setor privado de saúde.
A insistência na focalização das políticas sociais e na
ineficiência do gasto público é uma estratégia argumentativa usada para
justificar a ampliação do mercado de saúde, em detrimento do sistema público.
A questão não foi resolvida nos governos do PT. O SUS
continua sem bases estáveis de financiamento. Os governos petistas tampouco
enfrentaram a questão dos privilégios ao setor privado de saúde, a quem muito
interessa o sucateamento do SUS, e é fonte de influência dentro das duas casas
legislativas do Brasil. Em 2016, em meio à crise político-econômica, sob um
governo ilegítimo e o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, as
perspectivas são mais desanimadoras.
Com tudo isso, quis mostrar a construção histórica de um
vínculo deletério entre Estado e setor privado de saúde no Brasil, com
influência do mainstream liberal internacional. Todos os eixos estratégicos do
SUS foram negligenciados (o financiamento, o foco na atenção básica, a
valorização dos servidores públicos e a regionalização). O sistema enfrenta
obstáculos de todos os lados, que ou contornam ou ignoram a Constituição.
Podemos citar a judicialização da saúde, a ênfase nos setores complementar e
suplementar, a segmentação dos planos privados, as renúncias fiscais, e o
expressivo crescimento do setor privado lucrativo.
O sucateamento da saúde é uma questão política e não será
resolvida com remendos administrativos. A PEC 55 não é a raiz do problema, mas
é um agravante e também a expressão de interesses econômicos canalizados no
Estado brasileiro.
Nota
* Este texto é baseado em dissertação de mestrado orientada
pelo professor Eduardo Fagnani, no Instituto de Economia da UNICAMP. A
dissertação completa pode ser acessada pelo link: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000972316&opt=1.
Via - Blog do Miro
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