O jornalista espanhol Ignacio Ramonet, diretor do Le Monde
Diplomatique em espanhol e autor, junto com o próprio Fidel, do imbatível Fidel
Castro: biografia a duas vozes, divulgou neste sábado (26) o seguinte
testemunho sobre o líder e ex-presidente cubano.
O livro é amplamente considerado o testamento político de
Fidel Castro. Clique aqui para ler o texto de apresentação dele à biografia,
disponibilizado integralmente no Blog da Boitempo.
O Fidel que conheci
Por *Ignacio Ramonet:
Fidel faleceu, mas é imortal. Poucos homens conheceram a
glória de se tornar lenda e entrar para a História ainda vivos. Fidel é um
deles. Pertenceu à geração dos insurgentes míticos (Nelson Mandela, Patrice
Lumumba, Amilcar Cabral, Che Guevara, Camilo Torres, Turcios Lima, Ahmed Ben
Barka) aqueles que perseguiram um ideal de justiça e se lançaram à ação
política, naqueles já distantes Anos 50, com a ambição e a esperança de mudar um
mundo de desigualdades e de discriminações, marcado pelo começo da Guerra Fria
entre a União Soviética e os Estados Unidos.
Por Ignácio Ramonet
Naquela época, em mais da metade do planeta – no Vietnã, na
Argélia, em Guiné-Bissau –, os povos oprimidos se sublevavam. A humanidade
ainda estava, em grande parte, submetida à infâmia da colonização. Quase toda a
África e em grande parte da Ásia ainda eram dominadas, avassaladas pelos velhos
impérios ocidentais, enquanto as nações da América Latina – a maioria, em
teoria, independentes há um século e meio –, seguiam sendo exploradas por
privilegiadas minorias, submetidas à discriminação social e étnica, e muitas
delas marcadas por ditaduras cruéis amparadas por Washington.
Fidel suportou as investidas de dez presidentes
estadunidenses (Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush
pai, Clinton e Bush filho). Teve relações com os principais líderes que
marcaram o mundo depois da II Guerra Mundial (Nehru, Nasser, Tito, Jrushov,
Olaf Palme, Ben Bella, Boumedienne, Arafat, Mandela, Indira Gandhi, Salvador
Allende, Hugo Chávez, Lula da Silva, Brezhnev, Gorbachov, Mitterrand, João
Paulo II, o rei Juan Carlos, etc.). Conheceu alguns dos principais intelectuais
e artistas do seu tempo (Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Arthur Miller,
Pablo Neruda, Jorge Amado, Rafael Alberti, Guayasamin, Cartier-Bresson, José
Saramago, Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano, Noam Chomsky, etc.).
Sob sua direção, seu pequeno país (de 100 mil quilômetros
quadrados e 11 milhões de habitantes) impulsou uma política de grande potência
de escala mundial, desafiando os Estados Unidos, país que durante décadas
tentou mas não conseguiu derrubá-lo, nem eliminá-lo, e tampouco modificar o
rumo da Revolução Cubana – finalmente, em dezembro de 2014, tiveram que admitir
o fracasso de suas políticas anticubanas, uma de suas grandes derrotas
diplomáticas, e iniciar um processo de normalização que implicava em respeitar
o sistema político cubano.
Em outubro de 1962, a III Guerra Mundial esteve a ponto de
começar devido à atitude do governo dos Estados Unidos, que protestava contra a
instalação de mísseis nucleares soviéticos em Cuba, cuja função eram,
sobretudo, impedir outro desembarque militar como o de Bahia dos Porcos, desta
vez realizado pelas Forças Armadas estadunidenses, para derrocar o novo governo
nascido a partir da Revolução Cubana.
Há mais de 50 anos, Washington impõe a Cuba um devastador
embargo comercial – reforçado nos Anos 90 pelas leis Helms-Burton e Torricelli
–, que se mantém apesar do restabelecimento das relações diplomáticas e
obstaculiza o normal desenvolvimento econômico da ilha e traz brutais
consequências para os seus habitantes. Washington insiste também numa guerra
ideológica e midiática permanente contra Havana, através das potentes Rádio
“Martí” e TV “Martí”, instaladas na Flórida, que vivem de inundar Cuba de propaganda
anticastrista, assim como nos piores tempos da Guerra Fria.
Também existem várias organizações terroristas hostis ao
regime cubano – como Alpha 66 e Omega 7 –, todas elas com sede na Flórida, que
possuem campos de treinamento onde preparam agentes que são enviados
regularmente, com a cumplicidade passiva das autoridades estadunidenses, e que
são basicamente comandos armados para cometer atentados. Cuba é um dos países
que mais contabiliza vítimas de atentados terroristas nos últimos 60 anos: ao
menos 3,5 mil mortos.
Diante de tantos e tão permanentes ataques, as autoridades
cubanas fortaleceram a união dentro do país. Aplicaram, à sua maneira, o velho
lema de Santo Inácio de Loyola: “Numa fortaleza assediada, toda dissidência é
traição”. Porém, nunca houve, até a morte de Fidel, nenhum culto à
personalidade: nem retrato oficial, nem estátua, nem selo, nem moeda, nem rua
com seu nome, nem edifício, nem monumento à sua figura, assim como a de nenhum
dos líderes vivos da Revolução.
Cuba é um pequeno país apegado à sua soberania, que obteve,
sob a condução de Fidel Castro e apesar da permanente hostilidade exterior,
resultados excepcionais em matéria de desenvolvimento humano: abolição do
racismo, emancipação da mulher, erradicação do analfabetismo, redução drástica
da mortalidade infantil, elevação do nível cultural geral… Em aspectos como
educação, saúde, investigação médica e formação para os esportes, Cuba exibe
níveis que situam no grupo das nações mais bem sucedidas do mundo.
Sua diplomacia se tornou uma das mais ativas do mundo. Nos
Anos 60 e 70, Havana apoiou o combate das guerrilhas em muitos países da
América Central (El Salvador, Guatemala e Nicarágua) e na América do Sul
(Colômbia, Venezuela, Bolívia e Argentina). As Forças Armadas cubanas participaram
em campanhas militares de grande envergadura, especialmente nas guerras da
Etiópia e de Angola – neste último caso, sua intervenção se transformou numa
derrota das tropas militares de elite da República da África do Sul, o que
acelerou de maneira indiscutível o enfraquecimento daquele país e abriu caminho
para a queda do regime racista do apartheid.
A Revolução Cubana, que tinha em Fidel Castro seu
inspirador, o teórico e o líder político, ainda é, até hoje, uma importante
referência para milhões de flagelados do planeta, graças às suas conquistas
sociais e apesar de suas carências. Aqui na América Latina e em muitas outras
partes do mundo, mulheres e homens protestam e lutam, e muitos morrer tentando
estabelecer regimes inspirados pelo modelo cubano.
A queda do muro de Berlim e a desaparição da União
Soviética, junto com o fracasso histórico do socialismo de Estado, não
modificaram o sonho Fidel Castro de instaurar em Cuba uma sociedade diferente,
mais justa, mais saudável, melhor educada, sem privatizações nem discriminações
de nenhum tipo, e com uma cultura global total.
Até a véspera do seu falecimento, aos 90 anos, Fidel se
mantinha mobilizado na defesa da ecologia e do meio ambiente, e contra a
globalização neoliberal. Seguia na trincheira, na primeira linha, conduzindo a
batalha pelas ideias que ele defendia, pelas quais nada nem ninguém o fez
renunciar.
No panteão mundial consagrado àqueles que lutaram com mais
empenho pela justiça social e que mais esbanjaram solidariedade a favor dos
oprimidos da Terra, há um lugar reservado para Fidel Castro – por mais que isso
incomode os seus detratores.
Eu o conheci pessoalmente em 1975, e tive o prazer de
conversar com ele em inúmeras ocasiões, embora sempre em circunstâncias
profissionais e bastante precisas: para alguma reportagem que realizava na ilha
ou durante algum evento específico. Quando decidi escrever o livro Fidel
Castro: biografia a duas vozes, ele me convidou a acompanhá-lo durante dias,
numa viagem a diversos lugares, tanto em Cuba (Havana, Holguín, Santiago de
Cuba) como em outros países (como o Equador). Viajamos de carro, de avião,
caminhamos, almoçamos, e encontramos tempo para longas conversas, sem
gravadora, onde abordamos todos os temas possíveis, desde as notícias do dia,
passando por suas experiências passadas, até suas preocupações presentes.
Conversas que eu reconstruía horas depois em meus cadernos. Durante três anos,
nós nos víamos com certa frequência, nos juntávamos durante alguns dias ao
menos uma vez por trimestre.
Assim, descobri um Fidel íntimo. Quase tímido. Muito
educado. Escutando com atenção cada interlocutor. Sempre atento aos demais, em
particular os seus colaboradores mais próximos. Nunca escutei dele uma palavra
mais alta que outra. Nunca uma ordem. Com modos e gestos de uma cortesia típica
de outros tempos. Um cavalheiro. Com um alto sentido de pudor. Alguém que vive,
pelo que pude apreciar, de forma espartana. Mobiliário austero, comida leve.
Modos de vida de monge-soldado.
Sua jornada de trabalho costumava terminar às seis ou sete
da madrugada, quando o dia despertava. Mais de uma vez interrompia nossas
conversas de madrugada porque devia participar de uma “reunião importante”.
Dormia apenas quatro horas – mais, de vez em quando, cochilava uma ou duas
horas em algum momento do dia.
Também era um grande madrugador. E incansável. Viagens,
reuniões, uma após a outra, sem trégua. Um ritmo insólito. Seus assessores –
todos jovens e brilhantes, de pouco mais de 30 anos – terminavam o dia
exaustos. Pareciam dormir de pé. Esgotados. Incapazes de seguir o ritmo desse
infatigável gigante.
Fidel pedia notas, informes, notícias, estatísticas, resumos
de emissões de televisão ou de rádio, ligações telefônicas… Não parava de
pensar, de matutar. Sempre alerta, sempre em ação, sempre na cabeça de um
pequeno Estado maior – constituído por seus assessores e ajudantes –,
preparando uma nova batalha. Sempre com ideias. Pensando no impensável.
Imaginando o inimaginável. Com um atrevimento mental espetacular.
Uma vez definido um projeto. Nenhum obstáculo podia detê-lo.
Ele trabalhava incansavelmente até realizá-lo. Seu entusiasmo inspirava a
adesão dos que o conheciam. Despertava vontades. Quase como um fenômeno mágico,
ele fazia as ideias se materializara, se tornarem fatos concretos, palpáveis,
coisas, acontecimentos.
Sua capacidade retórica, tantas vezes descrita, era
prodigiosa. Fenomenal. Não falo de seus discursos públicos, bem conhecidos, mas
sim das simples conversações de sobremesa. Fidel era uma torrente de palavras.
Uma avalanche, que acompanhava a também eloquente gestualidade de suas finas
mãos.
Ele gostava da precisão, da exatidão, da pontualidade. Com
ele, nada de aproximações. Uma memória exuberante, de uma precisão
impressionante. Infalível. Tão rica que às vezes parecia impedi-lo de pensar de
maneira sintética. Seu pensamento era conciso. Todos os argumentos sempre bem
conectados. Tudo tinha que ver com tudo. Digressões constantes. Parenteses
permanentes. O desenvolvimento de um tema o levava, por associação, pela
lembrança de algum detalhe importante, de tal detalhe, ou situação, ou
personagem, a evocar um tema paralelo, e outro, e outro, e outro. Se afastava
do tema central, e o interlocutor temia, por um instante, que ele tivesse
perdido o fio da meada. Até que ele habilmente retomava, com surpreendente
naturalidade, a ideia principal.
Em nenhum momento, ao longo de mais de cem horas de
conversações, Fidel me impôs algum limite sobre qualquer questão das que
abordamos. Como intelectual que era, de um calibre considerável, não temia o
debate. Pelo contrário, era o que ele queria, o que ele buscava, o que o
estimulava. Sempre disposto a divergir com quem fosse. Com muito respeito para
com os demais. E era um discutidor e polemista temível, com argumentos
robustos. Apenas não suportava a má fé e o ódio.
*Nasceu na Galícia, em 1943. É diretor, em Paris, do Le
Monde Diplomatique. Especialista em geopolítica e estratégia internacional, é
professor de Teoria da Comunicação na Universidade Denis Diderot de Paris. É
doutor em Semiologia e História da Cultura pela Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais, onde foi aluno de Roland Barthes. É um dos fundadores da
Attac e membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. Pela
Boitempo, publicou Fidel: biografia a duas vozes (2006) e Mídia, poder e
contrapoder: da concentração monopólica à democratização do poder (2013).
Fonte: Blog da Boitempo
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