O que é Estatuto da Família? Muitos têm se perguntado sobre
o Estatuto da Família; trata-se de um Projeto de Lei (PL 6.583/13) em andamento
na Câmara dos Deputados, tal PL foi aprovado por Comissão Especial em
24/09/2015, 17 votos a 5. O que isso significa? Significa que os deputados consideraram
o PL constitucional e socialmente importante, verificando-se agora os
destaques.
Regimentalmente não há a necessidade de aprovação em
Plenário na Câmara, mas poderá ocorrer caso haja recurso de parlamentares. Se
aprovado, o PL será encaminhado para revisão pelo Senado Federal, de onde, se
não houver propostas de alterações, irá para sanção ou veto da presidenta da
República. Em caso de veto, poderá o Congresso Nacional mantê-lo ou rejeitá-lo.
Após sancionada, a norma entrará em vigor e será obrigatória – cabendo ao STF,
se provocado, julgar a (in)constitucionalidade.
Qual o objetivo do Estatuto da Família?
A motivação desse PL, do ponto de vista político, é clara,
desde seu art. 2º:
“...define-se entidade familiar como o núcleo social formado
a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união
estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes.”
Seu objetivo é o de garantir que a “família tradicional”
seja a única “correta”, juridicamente protegida, inclusive o negrito vem do
projeto original. Trata-se de uma “briga” comprada pela Câmara dos Deputados
contra o STF, em função do reconhecimento judicial de direitos aos LGBTTTs (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Esse “contra-ataque”
surge baseado na falsa concepção de que a democracia é um regime no qual o
poder é exercido exclusivamente e arbitrariamente pela vontade da maioria – ou
dos que se dizem “maioria”. Todavia, essa concepção mostra-se equivocada em
nosso país, pois a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado
Democrático de Direito, fundado na cidadania e na dignidade da pessoa humana.
Isso significa que o exercício do poder não se dá de qualquer forma, ele é
limitado pelos direitos humanos e fundamentais, inclusive em face das vontades
das maiorias.
Esses direitos não são objeto de permuta ou autorização do
Estado, são inalienáveis e imprescritíveis, constituindo limites contra
particulares e contra o próprio Estado. Mesmo assim, não é raro deputados
dizerem que: o STF “usurpou prerrogativas do Congresso” e “estendeu direitos”
indevidamente; – demonstrando que nossos parlamentares ainda não entenderam bem
o desenho constitucional brasileiro, nem a natureza dos direitos humanos e
fundamentais.
O STF “deu” direitos aos LGBTTTs?
O que o STF fez, ao julgar a ADPF 132/RJ e ADI 4277/DE, foi
ato de mero “reconhecimento” de direitos fundamentais aos LGBTTTs, direitos que
nunca estiveram em pauta de “aprovação” ou “reprovação” pelo Estado;
tratava-se, portanto, de uma violação aos direitos preexistentes dessas
minorias. Uma vez reconhecidos pelo STF, esses direitos passaram a vincular os
Três Poderes, competindo apenas atuação estatal no sentido de efetivá-los,
protegê-los e ampliá-los, nunca suprimi-los. O Estado serve ao Povo e não o
Povo ao Estado, os parlamentares servem aos direitos do Povo e não são donos
desses direitos. Há em nosso país uma falsa visão de que os direitos são “dados”,
como se fossem propriedade do Estado, que “dá” ou “tira”, ou pior: propriedade
de políticos que barganham “votos” por “direitos”. Nenhum LGBTTT pediu em uma
carta ao Legislativo, em 24 de dezembro, seus direitos sob a árvore de natal:
os LGBTTTs sempre possuíram e sempre possuirão tais direitos, o que contrariar
isso é violação, ilegalidade – gostando certas bancadas políticas ou não.
Dessa forma o Projeto de Estatuto “da Família”, por ser uma
norma limitadora de direitos fundamentais, é inconstitucional em sua origem.
Esse tipo de intervenção na vida privada é típica dos totalitarismos, fundados
em ideologias dogmáticas e no medo, sem bases racionais.
“Conselhos da Família” ou “Conselhos contra as Famílias”?
Outro ponto do Estatuto “da Família” é a criação de
“Conselhos da Família”, que servirão como um braço do poder público, um
instrumento ideológico do Estado. Serão implantados na sociedade civil para
garantir, como único “correto”, esse modelo “tradicional” de família. Dessa
forma, uma ação do poder público, que vise proteger direitos de famílias
LGBTTTs, seria passível de “denúncia” perante os Conselhos. Nos termos do PL
eles podem “encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua
infração administrativa ou penal contra os direitos da família garantidos na
legislação” – e o que seriam essas “violações”? Estariam estes Conselhos
voltados para a proteção “da família” ou seriam organizados para o sistemático
ataque aos que sequer poderiam ostentar o título de “famílias”?
Criação da Disciplina de “Educação para a Família”
A criação de uma disciplina de “Educação para família” é
outra questão fundamental: qual seria o conteúdo dessa disciplina? Quais
profissionais estariam “habilitados” para ministrar essa disciplina? Seria
necessária a contratação de especialistas em “família”, no caso: psicólogos.
Entretanto, os psicólogos não poderiam ministrar algo do gênero, pois, segundo
Resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia, isso é proibido: “os
psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de
comportamentos ou práticas homoeróticas”. Quem seria então o professor? Talvez
essa resposta diga bastante sobre a “laicidade” desse Estatuto, que cria uma
“disciplina” na qual os profissionais da área sequer poderiam atuar sem
responder por “indisciplina”. Qual seria a solução? Uma intervenção no Conselho
Federal de Psicologia? Uma intervenção para garantir que “a verdade” prevaleça
sobre a ciência!? Sim, é inconstitucional.
A (in)constitucionalidade não se confunde com o o gosto
pessoal, ou com o achismo, ela precisa ser fundamentada racionalmente. O
Projeto de Estatuto da Família sofre de graves inconstitucionalidades, sendo
baseado, tão somente, em interpretações preconceituosas. Em última instância, o
que ganhariam as “famílias tradicionais” com este Ato Estatucional? Nada! Todos
os direitos previstos no Estatuto já são garantidos a todo e qualquer cidadão,
ainda que sem família (saúde, educação, etc). Há nele pouquíssimas inovações
capazes de proteger as famílias, sendo que todas essas inovações poderiam ser
agregadas a políticas públicas capazes de proteger todas as famílias, não só um
tipo. Há uma falsa dicotomia, ideológica e não concreta, que a existência de
famílias LGBTTTs põe em risco a “família tradicional”, puro terror, argumento
desprovido de racionalidade: há espaço e direitos para todos e todas.
Transversamente se finge a “garantia” de um direito à “família tradicional”,
maquiando o real objetivo de se tolher os direitos das minorias. Nenhuma
família ganha com esse Estatuto, todas perdem; só quem ganha é o preconceito e
a intolerância!
*Victor Henrique Grampa é membro da Comissão de Direitos
Humanos da OAB/SP, membro da Comissão de Diversidade Sexual e Combate à
Homofobia da OAB/SP. Mestrando em Direito Político e Econômico pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Via - Portal Vermelho
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