Marechal Rondon (esq.), além de militar, também foi o
idealizador do Parque Nacional do Xingu e diretor do Serviço de Proteção ao
Índio.
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Cientista político e colunista de CartaCapital afirma que a
organização indígena se aperfeiçoou, mas esbarra no poder de setores ruralistas
e conservadores
Ao longo das décadas, os indígenas brasileiros conseguiram
se organizar politicamente de forma mais efetiva, mas em 2015 enfrentam a
possibilidade de sofrerem um duro retrocesso em seus direitos no Congresso
Nacional. Para o cientista político e colunista de CartaCapital Felipe Milanez,
isso reflete o fato de grupos anti-indígenas também estarem "mais
organizados e violentos, agindo dentro e fora das instituições".
Organizador do livro Memórias sertanistas: Cem anos de
indigenismo no Brasil (R$ 70,00, 424 págs., Ed. Sesc), cujo lançamento ocorre
nesta quinta-feira 17, em São Paulo, Milanez defende que os índios busquem
ocupar os espaços de debates nas zonas urbanas para reagir à pressão que sofrem
aos ataques. "É nas cidades que se escolhem os congressistas, que as
mobilizações ganham maior atenção da mídia e da opinião pública, e é nas
cidades que se tenta justificar o saque aos territórios indígenas", afirma.
A obra Memórias sertanistas reúne doze personagens que
doaram suas vidas para garantir a sobrevivência de povos indígenas. Partindo
das experiências destes importantes sertanistas, o livro reflete sobre a forma
como a cultura ocidental lida com a natureza e sobre a luta pela sobrevivência
dos índios que ainda não foram engolidos pela cultura do consumo e da
degradação do meio ambiente. Leia a entrevista a seguir:
CartaCapital: Pela
tradição oral dos povos indígenas do continente americano, pode-se dizer que
seu livro tem uma importância histórica na preservação da memória de lutas
destes povos?
Felipe Milanez: O livro tenta preservar as memórias de dez
sertanistas, contadas por eles mesmos, e a de Chico Meireles e os irmãos Villas
Bôas, relatadas por duas lideranças indígenas que conviveram com eles. Esses
sertanistas lutaram em defesa dos povos indígenas, junto dos indígenas, ao lado
deles, mas de dentro do Estado. Nesse sentido, são memórias da luta indígena a
partir de agentes do Estado. Ou seja, de dentro do Estado, é possível sim lutar
e defender os direitos dos povos indígenas, mesmo que seja contra o Estado e
contra os interesses privados.
Os depoimentos expõe algumas contradições da relação entre o
Estado brasileiro e os indígenas que vivem aqui. E isso foi feito, por um lado,
com o intuito de ajudar os povos afetados por erros do Estado a recuperarem
direitos territoriais. O sertanista Wellington Figueiredo diz: "É para os
índios que escrevi meus diários". Por outro lado, no atual momento de crise
e de violentos ataques contra os povos indígenas e seus direitos, é importante
imaginar formas de resistências inspiradas nas histórias de quem lutou a vida
inteira ao lado dos índios. As pessoas que compartilham suas memórias nesse
livro fizeram com a intenção de que isso possa ajudar os povos indígenas em
suas lutas.
CC: As violências sofridas pelos índios durante a ditadura
continuam?
FM: A ditadura intensificou processos de violência que já
vinham ocorrendo, e produziu novas estruturas que se mantêm até hoje, bastante
fortes, mesmo depois da Constituição de 1988. Isso é: antes da ditadura já se
praticavam muitos crimes contra os povos indígenas, como foi sintetizado em
dois grandes trabalhos: o livro Os Índios e a Civilização, de Darcy Ribeiro, e
o Relatório Figueiredo, elaborado pelo procurador Jader Figueiredo. Durante a
ditadura, pelo menos oito mil indígenas foram mortos, por ação ou por omissão
do Estado, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade. A ditadura
abriu a infraestrutura da invasão dos territórios indígenas, como a estrada BR
230, a Transamazônica, que afetou diretamente pelo menos 18 povos indígenas,
com alguns massacres e muitas mortes.
Até hoje nenhum impacto foi compensado, e a violência
persiste, como foi o caso recente de ataques da população local contra os
Tenharim, no sul do Amazonas, justamente em razão de um conflito gerado pela
Transamazônica. Esse é um exemplo, mas o mesmo ocorre com os Aikewara,
igualmente impactados pela abertura de uma estrada em seu território, no Pará,
ou os Guarani e os Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, que tiveram a invasão de seus
territórios intensificada durante a ditadura. Talvez um dos piores legados da
ditadura, e que persiste até hoje, é o assassinato de lideranças indígenas,
seja por forças do Estado, ou então por aqueles que vêem os índios como seus
inimigos.
CC: Hoje os índios estão mais organizados?
FM: Os índios começaram a se organizar, em diferentes uniões
políticas pan-indígenas, a partir dos anos 1970, e mais intensamente nos anos
1980, com a União das Nações Indígenas, liderada por Ailton Krenak. Os índios
foram percursores de muitos movimentos sociais, inspiraram a luta de Chico
Mendes e dos seringueiros pelas Reservas Extrativistas, e foram pioneiros no
debate sócio-ecológico, contrapondo-se às formas de conservação hegemônicas,
que seguem uma velha ideologia ocidental de separar sociedade de natureza, para
propor formas sofisticadas de preservação e convívio com o meio ambiente.
Hoje estão organizados em centenas de associações,
federações, articulados em uma ampla rede política, e detêm mais ferramentas de
comunicação e informação. Por isso, não só não dependem da Funai, pois a Funai
se tornou, como antes, um órgão de repressão às iniciativas indígenas. Atualmente,
a Funai serve mais ao governo e aos interesses do governo do que na defesa dos
povos indígenas. E grandes lideranças estão sendo perseguidas pela Funai e pelo
governo, através de processos administrativos, como o que sofre o líder kayapó
Megaron Txucarramãe. Por isso, os indígenas estão mais fortes e organizados
politicamente, mas as forças anti-indígenas também estão mais organizadas e
cada vez mais brutais e violentas, agindo dentro e fora das instituições.
CC: E os perigos contra seus direitos são maiores?
FM: Há um verdadeiro massacre de direitos em pauta no
Congresso Nacional, cujo principal objetivo é destruir a Constituição de 1988.
A principal força por trás disso é o consenso das commodities, operado pela
política neoextrativista e neodesenvolvimentista do governo junto dos
tradicionais piratas e saqueadores, como são os ruralistas e grandes
mineradoras, para a extração massiva para exportação dos recursos naturais do
País. Essa riqueza, já sendo extinguida por todos os lados, ainda está preservada
graças aos povos indígenas, e é contra eles que miram com violência, racismo e
discriminação.
CC: Os indígenas ainda sofrem racismo no Brasil?
FM: Não é fácil o combate ao racismo no Brasil, apesar do
imenso esforço dos indígenas. O racismo caminha ao lado do interesse nos
recursos dos territórios indígenas, como um neocolonialismo. A democracia que
seguiu a ditadura chegou menos aos indígenas do que aos brancos. Há uma
hierarquia de cidadanias, de classes étnicas: os indígenas são inferiorizados,
animalizados, bestializados. Isso continua muito forte. Dentro do governo são
discriminados, por juízes racistas são discriminados, e assassinados como
animais por ruralistas.
CC: Ao retomar a história dos povos indígenas, seu livro
busca apresentar para os moradores de grandes cidades uma saída para uma
sociedade mais harmoniosa e sustentável?
FM: É preciso reestabelecer uma conexão entre as cidades e
as lutas indígenas. Os moradores das cidades são agentes fundamentais para
lutar ao lado dos povos indígenas em face das frentes violentas em campo. É nas
cidades que se escolhem os congressistas, que as mobilizações ganham maior
atenção da mídia e da opinião pública, e é nas cidades que se tenta justificar
o saque aos territórios indígenas, como a infeliz argumentação da necessidade
imperativa de Belo Monte para algum indivíduo poder ligar seu computador ou
usar o ar condicionado. Não é preciso matar um Arara, ou um Xikrin, para ter
energia em São Paulo. Não é preciso matar um Guarani para que a balança comercial
se recupere. Não é preciso "genocidar" os indígenas para que outros
brasileiros, nas cidades, sejam felizes. É justamente ao contrário: defender os
direitos indígenas é defender os direitos da maioria da população brasileira,
contra uma violenta minoria que pensa apenas em seus próprios interesses
pessoais e usam todas as armas para garantir seus benefícios.
Agenda:
Dia: 17/09/2015
Horário: 19 horas
Local: Livraria da Vila
Endereço: Alameda Lorena, 1731 - Jardim Paulista, São Paulo.
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