Por Thiane Neves Barros
É de conhecimento do senso comum que mulher negra é
considerada como a mulher barraqueira. Aquela que fala alto, que não leva
desaforo pra casa, mal educada, lavadeira, tacacazeira, que põe a mão nas
cadeiras e balança a cabeça de forma cadenciada com o pescoço. Adjetivos ditos
sempre em tom pejorativo. Portanto, o título de meu texto é uma ironia. Pois as
mulheres brancas quase nunca são barraqueiras, apenas são as donas da voz, são
as madames, as donas da gentileza e da educação, aquelas que falam baixo, aquelas
com voz de veludo, as de fino trato e que nunca tem a intenção de ofender. Mas
a ironia, lógico, é direcionada. Ironizo aqui as feministas brancas que
insistem em controlar e supervisionar os passos e as falas de mulheres negras.
Até bem pouco tempo, não tínhamos mulheres negras como
referência intelectual no feminismo. Algumas combatentes mais antigas acabavam
tendo atuações isoladas e solitárias. Em um brevíssimo resumo dessa história,
nenhuma novidade: quando as mulheres brancas começaram a se organizar e
combater a estrutura do patriarcado, sabemos que elas tinham condições de se
reunirem em suas assembleias porque em casa tinham quem cuidasse da sua vida
doméstica: outra mulher. A mãe? As irmãs? As tias? Lógico que não. As mulheres
que facilitavam as lutas feministas brancas eram as mulheres negras, as
criadas, mas isso a gente já sabe também.
Eu imagino o quanto Oyá e Ewá se indignavam com nossa não
possibilidade de protagonismo. Mas o dia chegou. Mulheres negras começaram a se
levantar e aos poucos se organizaram. E eis que de negras da família, passamos
a ser as negras insubordinadas.
Mais anos passaram, ao longo desse tempo algumas feministas
brancas perceberam seus equívocos e somaram, aliaram-se, souberam compreender
seus espaços dentro da luta das mulheres negras. Outras deixaram como herança
uma profunda e estúpida impossibilidade reflexiva quanto ao recorte
racial, territorial e identitário na
luta pela equidade feminina em um pensamento estruturado no racismo e no
patriarcado. E é com as herdeiras desta segunda categoria de feministas brancas
a quem direciono este meu texto.
Agora é contigo, feminista branca-supervisora-fiscalizadora.
Alguma vez nesta tua estrada tortuosa de não reflexão, de não leitura de livros
e de pessoas, tu tiraste os olhos do teu umbigo e olhaste ao redor do mundo?
Alguma vez já te puseste a pensar sobre representatividade x protagonismo x
visibilidade? Alguma vez já te puseste a pensar que mulheres como eu – negra,
amazônida, periférica – passamos décadas sem lermos uma só linha escrita por
mulheres iguais a nós?
Tu sabes quantos anos eu tinha quando vi uma mulher negra
amazônida, em situação de liderança na televisão, a primeira vez? Exatos 20
anos de idade. Hoje estou com 38 e nunca esqueci aquela imagem. Tu sabes a
importância, pra mim, de ter visto aquela mulher na televisão sem estar
subjugada? Então querida, tuas parças te fizeram midiática, e as minhas também
me fazem querer ser midiática, sim. Vamos ser estrelas, sim. Estrelas de nós
mesmas. E vamos ocupar espaços que nos são negados, sim.
Quando resolvi me arriscar no maravilhoso mundo das
interwebs feminísticas, minha intenção era contribuir com o que muitas negras
amazônidas já fazem há anos: colocar a mulher nortista, amazônida, paraense,
belemense, em primeiro plano. Porque sim, nós padecemos do mal da
invisibilidade por todos os mesmos motivos que uma mulher branca – por ser
mulher, que uma mulher negra – por sermos negras, que uma mulher indígena – por
ser “selvagem”, padecemos ainda mais por habitarmos um território marginalizado
e onde mais impera o conceito da mestiçagem brasileira e latino-americana.
Poucas pessoas sequer sabem quantos estados compõem a Amazônia, imagina saberem
o quanto aqui precisamos de vozes altas, de gritos, de embates físicos. De
negras midiáticas. De negras insubordinadas.
Nós não rachamos o movimento de mulheres, nós não rachamos o
feminismo. Suas ancestrais apenas não nos incluíram entre as mulheres que
mereciam equidade. Ficamos chorando? Sim, choramos muito, é verdade, porque
nossas ancestrais levaram muita peia de feministas brancas, mas nós reagimos e
agora estamos aqui: escrevendo, escrevendo, escrevendo, escrevendo. É por meio
da atuação de mulheres negras na internet que aqui na Amazônia a gente também
consegue ter um banquinho nessa rede.
Feminismo é política, sim. E eu li Simone de Beauvoir e
Judith Butler. Mas eu te pergunto: tu leste que feminista negra, querida? Já
ouviste falar em Beatriz Nascimento? Em Zélia Amador de Deus? Tu conheces
alguma mulher quilombola na luta armada por direitos ao seu pedaço de chão?
Quem tu és na fila do pão do feminismo negro pra se encher de autoridade e
difamar uma feminista negra, querida? Que sabes sobre política pública que
envolva mulheres negras neste racismo tão competente? Já foste na fila do SUS
pra ver quantas mulheres negras estão lá sendo deixadas por últimas na fila,
porque alguém inventou que são mais resistentes à dor? Então, quem és tu pra
fiscalizar nossas atuações e nossas histórias? Uma de nós errou, cometeu um
equívoco, pisou na bola? Isso te faz querer ser heroína e salvar todas as
feministas de uma feminista negra? Apenas não, querida. Cale-se e aguarde
alguém com legitimidade para fazê-lo.
Tipo torto de afeto tu dizes pras tuas iguais, porque com
todas as nossas dificuldades – inclusive de se livrar de feminista
branca-supervisora-fiscalizadora em nossas lutas -, o que paira sobre a gente é
ubuntu mesmo, querida.
Sobre onde estamos quando as cordas estão arrebentando:
Quantas vezes tu saíste da tua casa pra defender e socorrer uma mulher em uma
delegacia, querida feminista branca-supervisora-fiscalizadora? Quantas vezes tu
abrigaste, na tua casa, mulheres ameaçadas pelos maridos, namorados, noivos?
Quantas vezes a tua cabeça esteve na mira de uma bala por se meter em briga de
marido e mulher? Quantas vezes denunciaste homem da tua família por violência
doméstica? E quantas vezes escondeste jovem da tua família porque a polícia
achou que tava roubando? Pois é, eu vivi todas estas situações dentro da minha casa.
Uma casa de duas mulheres negras conhecidamente barraqueiras por se indisporem
com qualquer pessoa que pise em outra.
Tu sabes quantas vezes eu consegui levantar da cama depois
de ler um texto de outra mulher negra na internet? Tu sabes quantos sorrisos eu
dei depois de ler um texto de outra mulher negra na internet? Ora, ora, ora
querida feminista branca-supervisora-fiscalizadora, tu entendes bem de
feminismo-merchan, mas para entender de equidade estás a necessitar de leitura,
vivência e menos arrogância.
E tua covardia é tamanha,
querida feminista branca-supervisora-fiscalizadora, que tu somes assim
que tuas investidas contra a mulher negra são mal sucedidas. Porque quem te
deixou a herança do racismo não previu que a gente ia lutar pra quebrar todas
as formas de troncos e chibatadas.
No mais, estamos preocupadas mesmo é em dar orgulho às que
nos antecederam, seja na Bahia, em São Paulo ou aqui em Belém. Apenas a elas
devemos as contas do que pensamos, de como agimos e o que faremos daqui a
outros tempos.
Nós não somos obrigadas a seguir cartilha de feminista
branca, nunca fomos, nunca seremos.
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