Heresia! A mais pura heresia!
"A afirmação pode soar desrespeitosa para judeus ou
cristãos, mas não está muito longe da verdade: Javé, o Deus do Antigo
Testamento, parece ter múltiplas personalidades. Para ser mais exato,
especialistas que estudam os textos bíblicos, lêem antigas inscrições
encontradas nos arredores de Israel ou escavam sítios arqueólogicos estão
reconhecendo a influência conjunta de diversos deuses pagãos antigos no retrato
de Javé traçado pela Bíblia." (Movimento Direito Para Quem)
O deus cananeu El, retratado como um pai sábio e idoso, foi muito importante nos primórdios da religião israelita (Foto: Reprodução) |
Por Reinaldo José Lopes
Personalidade e atributos de Javé são compartilhados com
outras divindades do Oriente.
Pai celestial El, jovem guerreiro Baal e até 'senhora'
Asherah teriam sido influências.
A afirmação pode soar desrespeitosa para judeus ou cristãos,
mas não está muito longe da verdade: Javé, o Deus do Antigo Testamento, parece
ter múltiplas personalidades. Para ser mais exato, especialistas que estudam os
textos bíblicos, lêem antigas inscrições encontradas nos arredores de Israel ou
escavam sítios arqueólogicos estão reconhecendo a influência conjunta de
diversos deuses pagãos antigos no retrato de Javé traçado pela Bíblia.
O ponto de partida dessas análises é o fundo cultural comum
entre o antigo povo de Israel e seus vizinhos e adversários, os cananeus
(moradores da terra de Canaã, como era chamada a região entre o rio Jordão e o
mar Mediterrâneo em tempos antigos). A Bíblia retrata os israelitas como um
povo quase totalmente distinto dos cananeus, mas os dados arqueólogicos revelam
profundas semelhanças de língua, costumes e cultura material – a língua de
Canaã, por exemplo, era só um dialeto um pouco diferente do hebraico bíblico.
Memórias de Ugarit
Os cananeus não deixaram para trás uma herança literária tão
rica quanto a Bíblia. No entanto, poucos quilômetros ao norte de Canaã, na
atual Síria, ficava a cidade-Estado de Ugarit, cuja língua e cultura eram
praticamente idênticas às de seus primos do sul. Ugarit foi destruída por
invasores bárbaros em 1200 a.C., mas os arqueólogos recuperaram numerosas
inscrições da cidade, nas quais dá para entrever uma mitologia que apresenta
semelhanças (e diferenças) impressionantes com as narrativas da Bíblia. “Por
isso, Ugarit é uma parte importante do fundo cultural que, mais tarde, daria
origem às tribos de Israel”, resume Christine Hayes, professora de estudos
clássicos judaicos da Universidade Yale (EUA).
Uma das figuras mais proeminentes nesses textos é El – nome
que quer dizer simplesmente “deus” nas antigas línguas da região, mas que
também se refere a uma divindade específica, o patriarca, ou chefe de família,
dos deuses. “Patriarca” é a palavra-chave: o El de Ugarit tem paralelos muito
específicos com a figura de Deus durante o período patriarcal, retratado no
livro do Gênesis e personificado pelos ancestrais dos israelitas: Abraão, Isaac
e Jacó.
Nesses textos da Bíblia há, por exemplo, referências a El
Shadday (literalmente “El da Montanha”, embora a expressão normalmente seja
traduzida como “Deus Todo-Poderoso”), El Elyon (“Deus Altíssimo”) e El Olam
(“Deus Eterno”). O curioso é que, na mitologia ugarítica, El também é imaginado
vivendo no alto de uma montanha e visto como um ancião sábio, de vida eterna.
Tal como os patriarcas bíblicos, El é uma espécie de nômade,
vivendo numa versão divina da tenda dos beduínos; e, mais importante ainda, El
tem uma relação especial com os chefes dos clãs, tal como Abraão, Isaac e Jacó:
eles os protege e lhes promete uma descendência numerosa. Ora, a maior parte do
livro do Gênesis é o relato da amizade de Deus com os patriarcas israelitas,
guiando suas migrações e fazendo a promessa solene de transformar a
descendência deles num povo “mais numeroso que as estrelas do céu”.
Israel ou “Israías”?
Outros dados, mais circunstanciais, traçam outros elos entre
o Deus do Gênesis e El: num dos trechos aparentemente mais antigos do livro
bíblico, Deus é chamado pelo epíteto poético de “Touro de Jacó” (frase às vezes
traduzida como “Poderoso de Jacó”), enquanto a mitologia ugarítica compara El
freqüentemente a um touro. Finalmente, o próprio nome do povo escolhido –
Israel, originalmente dado como alcunha ao patriarca Jacó – carrega o elemento
“-el”, lembra Airton José da Silva, professor de Antigo Testamento do Centro de
Estudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto (SP).
“É o nome do deus cananeu, mais um indício de que Israel
surge dentro de Canaã, por um processo gradual”, diz Silva. Ele argumenta que,
se Javé fosse desde sempre a divindade dos israelitas, o nome desse povo seria
“Israías”. Isso porque o elemento adaptado como “-ías” em português (algo como
-yahu) era, em hebraico, uma forma contrata do nome “Javé”. Curiosamente, o
elemento se torna dominante nos chamados nomes teofóricos (ligados a uma
divindade) dados a israelitas no período da monarquia, a partir dos séculos 10
a.C. e 9 a.C.
E esse nome (provavelmente Yahweh em hebraico; a sonoridade
original foi obscurecida pelo costume de não pronunciar a palavra por respeito)
é um enigma e tanto. As tradições bíblicas são um tanto contraditórias, mas
pelo menos uma fonte das Escrituras afirma que Javé só deu a conhecer seu
verdadeiro nome aos israelitas quando convocou Moisés para ser seu profeta e
arrancar os descendentes de Jacó da escravidão no Egito. (A Moisés, Deus diz
que apareceu a Abraão, Isaac e Jacó como “El Shadday”.) O problema é que
ninguém sabe qual a origem de Javé, o qual nunca parece ter sido uma divindade
cananéia, exatamente como diz o autor bíblico.
Senhor do deserto
A esmagadora maioria dos arqueólogos e historiadores
modernos não coloca suas fichas no Êxodo maciço de 600 mil israelitas (sem
contar mulheres e crianças) do Egito, por dois motivos: a semelhança entre
Israel e os cananeus e a falta de qualquer indício direto da fuga. Mas muitos
supõem que um pequeno componente dos grupos que se juntaram para formar a nação
israelita tenha sido formado por adoradores de Javé, que acabaram popularizando
o culto. Quem seriam esses primeiros javistas? Uma pista pode vir de alguns
documentos egípcios, que os chamam de Shasu – algo como “nômades” ou
“beduínos”.
“Duas ou três inscrições egípcias mencionam um lugar chamado
'Yhwh dos Shasu', o que, para alguns especialistas, parece ser 'Javé dos
Shasu'. Talvez sim, talvez não. Não temos como saber ao certo”, diz Mark S.
Smith, pesquisador da Universidade de Nova York e autor do livro “The Early
History of God” (“A História Antiga de Deus”, ainda sem tradução para o
português).
“É menos provável que o culto a Javé venha de dentro da
Palestina e da Síria, e um pouco mais plausível que ele tenha se originado em
certas regiões da Arábia”, diz Airton da Silva. Mark Smith lembra que algumas
das passagens poéticas consideradas as mais antigas da Bíblia – nos livros dos
Juízes e nos Salmos, por exemplo – referem-se ao “lar” de Javé em locais
denominados “Teiman” ou “Paran”. Aparentemente, são áreas desérticas,
apropriadas para a vida de nomadismo. “Muitos especialistas localizam essa
região no que seria o noroeste da atual Arábia Saudita, ao sul da antiga Judá
[parte mais meridional dos territórios israelitas]”, diz Smith.
Guerreiro divino
Baal, retratado como guerreiro (provavelmente a estatueta tinha uma lança na mão), lembra Javé por causa de sua luta contra monstros marinhos (Foto: Reprodução ) |
Seja como for, quando Javé entra em cena com seu “nome oficial” durante o Êxodo bíblico, a impressão que se tem é que ele já absorveu boa parte das características de um outro deus cananeu: Baal (literalmente “senhor”, “mestre” e, em certos contextos, até “marido”), um guerreiro jovem e impetuoso que acabou assumindo, na mitologia de Ugarit e da Fenícia (atual Líbano), o papel de comando que era de El.
Indícios dessa nova “personalidade” de Deus surgem no fato
de que, pela primeira vez na narrativa bíblica, Javé é visto como um guerreiro,
destruindo os “carros de guerra e cavaleiros” do Faraó e, mais tarde, guiando
as tribos de Israel à vitória durante a conquista da terra de Canaã. Tal como
Baal, Javé é descrita como “cavalgando as nuvens” e “trovejando”. E, mais
importante ainda, uma série de textos bíblicos falam de Deus impondo sua
vontade contra os mares impetuosos (como no caso do Mar Vermelho, em que as
águas engolem o exército egípcio por ordem divina) ou derrotando monstros
marinhos.
Há aí uma série de semelhanças com a mitologia cananéia
sobre Baal, o qual derrotou em combate o deus-monstro marinho Yamm (o nome quer
dizer simplesmente “mar” em hebraico) ou “o Rio” personificado. Na mitologia do
Oriente Próximo, as águas marinhas eram vistas como símbolos do caos primitivo,
e por isso tinham de ser derrotadas e domadas pelos deuses.
Javé também é associado à chuva e à fertilidade da terra
pelos antigos autores bíblicos – atributos que aparecem entre as funções de Baal.
Há, porém, uma diferença importante entre os dois deuses: outra narrativa de
Ugarit fala do assassinato de Baal pelas mãos de Mot, o deus da morte, e da
ressurreição do jovem guerreiro – provavelmente uma representação mítica do
ciclo das estações do ano, essencial para a agricultura, já que Baal era um
deus que abençoava a lavoura.
O lado guerreiro de Javé é talvez o mais difícil de aceitar
para a sensibilidade moderna: quando os israelitas realizam a conquista da
terra de Canaã, a ordem dada por Deus é de simplesmente exterminar todos os
habitantes, e às vezes até os animais (embora, em alguns casos, os homens de
Israel recebam permissão para transformar as mulheres do inimigo em
concubinas).
Textos de outra nação da área, os moabitas (habitantes de
Moab, a leste do Jordão) ajudam a lançar luz sobre esse costume aparentemente
bárbaro. Um monumento de pedra conhecido como a estela de Mesa (nome de um rei
de Moab em meados do século 9 a.C.) fala, ironicamente, de uma guerra de Mesa
com Israel na qual o rei moabita, por ordem de seu deus, Chemosh, decreta o
herem, ou “interdito”. E o herem nada mais é que a execução de todos os
prisioneiros inimigos como um ato sagrado. Tratava-se, portanto, de um elemento
cultural de toda a região.
Inscrição feita por ordem de Mesa, rei de Moab (país vizinho do antigo Israel) : texto fala de genocídio por ordem divina, tal como se vê nos textos bíblicos (Foto: Reprodução ) |
Lado feminino
Se a “múltipla personalidade” de Javé pode ser basicamente
descrita como uma combinação de El e Baal, há uma influência mais sutil, mas
também perceptível, de um elemento feminino: a deusa da fertilidade Asherah,
originalmente a esposa de Baal na mitologia cananéia. Normalmente, Deus se
comporta de forma masculina na Bíblia, e a linguagem utilizada para falar de
sua relação com os israelitas é, muitas vezes, a de um marido (Deus) e a esposa
(o povo de Israel). Mas o livro bíblico dos Provérbios, bem como alguns outras
fontes israelitas, apresenta a figura da Sabedoria personificada, uma espécie
de “auxiliar” ou “primeira criatura” de Deus que o teria auxiliado na obra da
criação do mundo.
Segundo o texto dos Provérbios, Deus “se deleita” com a
Sabedoria e a usa para inspirar atos sábios nos seres humanos. Para muitos
pesquisadores, a figura da Sabedoria incorpora aspectos da antiga Asherah na
maneira como os antigos israelitas viam Deus, criando uma espécie de tensão:
embora o próprio Deus não seja descrito como feminino, haveria uma
complementaridade entre ele e sua principal auxiliar.
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