De repente, em plena Segunda Guerra, os japoneses cortaram o
fornecimento de borracha para os Estados Unidos. Como resultado, milhares de
brasileiros do Nordeste foram enviados para os seringais amazônicos, em nome da
luta contra o nazismo. Essa foi a Batalha da Borracha, um capítulo obscuro e
sem glória do nosso passado, ainda vivo na memória dos últimos e ainda
abandonados sobreviventes.
No final de 1941, os países aliados viam o esforço de guerra
consumir rapidamente seus estoques de matérias-primas estratégicas. E nenhum
caso era mais alarmante do que o da borracha. A entrada do Japão no conflito
determinou o bloqueio definitivo dos produtores asiáticos de borracha. Já no
princípio de 1942, o Japão controlava mais de 97% das regiões produtoras do
Pacífico, tornando crítica a disponibilidade do produto para a indústria bélica
dos aliados.
A conjunção desses acontecimentos deu origem no Brasil à
quase desconhecida Batalha da Borracha. Uma história de imensos sacrifícios
para milhares de trabalhadores que foram para a Amazônia e que, em função do
estado de guerra, receberam inicialmente um tratamento semelhante ao dos
soldados. Mas, ao final, o saldo foi muito diferente: dos 20 mil combatentes na
Itália, morreram apenas 454. Entre os quase 60 mil soldados da borracha, porém,
cerca da metade desapareceu na selva amazônica.
Os Acordos de Washington
Quando a extensão da guerra ao Pacífico e ao Índico interrompeu
o fornecimento da borracha asiática, as autoridades americanas entraram em
pânico. O presidente Roosevelt nomeou uma comissão para estudar a situação dos
estoques de matérias-primas essenciais para a guerra. E os resultados obtidos
por essa comissão foram assustadores:
"De todos os materiais críticos e estratégicos, a
borracha é aquele cuja falta representa a maior ameaça à segurança de nossa
nação e ao êxito da causa aliada (...) Consideramos a situação presente tão
perigosa que, se não se tomarem medidas corretivas imediatas, este país entrará
em colapso civil e militar. A crueza dos fatos é advertência que não pode ser
ignorada." (Comissão Baruch).
As atenções do governo americano se voltaram então para a
Amazônia, grande reservatório natural de borracha, com cerca de 300 milhões de
seringueiras prontas para a produção de 800 mil toneladas de borracha anuais,
mais que o dobro das necessidades americanas. Entretanto, naquela época, só
havia na região cerca de 35 mil seringueiros em atividade com uma produção de
16 mil a 17 mil toneladas na safra de 1940-1941.
Seriam necessários, pelo menos, mais 100 mil trabalhadores
para reativar a produção amazônica e elevá-la ao nível de 70 mil toneladas
anuais no menor espaço de tempo possível.
Para alcançar esse objetivo, iniciaram-se intensas
negociações entre as autoridades brasileiras e americanas, que culminaram com a
assinatura dos Acordos de Washington. Como resultado, ficou estabelecido que o
governo americano passaria a investir maciçamente no financiamento da produção
de borracha amazônica. Em contrapartida, caberia ao governo brasileiro o
encaminhamento de grandes contingentes de trabalhadores para os seringais -
decisão que passou a ser tratada como um heroico esforço de guerra. No papel, o
esquema parece simples, mas a realidade mostrou-se muito mais complicada quando
chegou o momento de colocá-lo em prática.
A Batalha da Borracha
Para o governo brasileiro era uma oportunidade para mitigar
alguns dos mais graves problemas sociais brasileiros. Somente em Fortaleza,
cerca de 30 mil flagelados da seca de 1941-1942 estavam disponíveis para ser
enviados imediatamente para os seringais. Mesmo que de forma pouco organizada,
o DNI (Departamento Nacional de Imigração) ainda conseguiu enviar quase 15 mil
pessoas para a Amazônia, durante o ano de 1942, metade das quais homens aptos
ao trabalho nos seringais.
Aqueles eram os primeiros soldados da borracha. Simples
retirantes que se amontoavam com suas famílias por todo o Nordeste, fugindo de
uma seca que teimava em não acabar e os reduzia à miséria. Mas aquele primeiro
grupo era, evidentemente, muito pequeno diante das pretensões americanas.
O problema era a baixa capacidade de transporte das empresas
de navegação dos rios amazônicos e a pouca disponibilidade de alojamento para
os trabalhadores em trânsito. Mesmo com o fornecimento de passagens do Lloyd,
com a abertura de créditos especiais pelo governo brasileiro e com a promessa
do governo americano de pagar US$ 100 por um novo trabalhador instalado no
seringal, as dificuldades eram imensas e pareciam intransponíveis.
Isso só começou a ser solucionado em 1943 por meio do
investimento maciço que os americanos realizaram no Snapp (Serviço de Navegação
e Administração dos Portos do Pará) e da construção de alojamentos espalhados
ao longo do trajeto percorrido pelos soldados da borracha.
Para acelerar ainda mais a transferência de trabalhadores
para a Amazônia e aumentar significativamente sua produção de borracha os
governos americano e brasileiro encarregaram diversos órgãos do gerenciamento
do programa.
Pelo lado americano estavam envolvidas a RDC (Rubber Development
Corporation), a Board of Economic Warfare, a RRC (Rubber Reserve Company), a
Reconstrucction Finance Corporation e a Defense Supllies Corporation. Pelo lado
brasileiro, foram criados o Semta (Serviço Especial de Mobilização de
Trabalhadores para a Amazônia), depois substituído pela Caeta (Comissão
Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia), a Sava
(Superintendência do Abastecimento do Vale Amazônico) e o BCB (Banco de Crédito
da Borracha), entre outros.
Esses novos órgãos, em muitos casos, se sobrepunham a outros
já existentes, como o DNI, e não é preciso muito esforço para imaginar o
tamanho da confusão oficial que se tornou o empreendimento.
A ilusão do paraíso
Em todas as regiões do Brasil, aliciadores tratavam de
convencer trabalhadores a se alistar como soldados da borracha e, assim,
auxiliar a causa aliada. Alistamento, recrutamento, voluntários, esforço de
guerra tornaram-se termos comuns no cotidiano popular. A mobilização de
trabalhadores para a Amazônia coordenada pelo Estado Novo foi revestida por
toda a força simbólica e coercitiva que os tempos de guerra possibilitavam.
No Nordeste, de onde deveria sair o maior número de
soldados, o Semta convocou padres, médicos e professores para o recrutamento de
todos os homens aptos ao grande projeto que precisava ser empreendido nas
florestas amazônicas. O artista suíço Chabloz foi contratado para produzir
material de divulgação acerca da "realidade" que os esperava. Nos
cartazes coloridos os seringueiros apareciam recolhendo baldes de látex que
escorria como água de grossas seringueiras.
Todo o caminho que levava do sertão nordestino, seco e amarelo,
ao paraíso verde e úmido da Amazônia estava retratado naqueles cartazes
repletos de palavras fortes e otimistas.
O slogan "Borracha para a Vitória" tornou-se o
emblema da mobilização realizada por todo o Nordeste. Espalhadas pelas
esquinas, nas paredes das casas e nos bares, a colorida propaganda oficial
garantia que todos os trabalhadores teriam passagem grátis e seriam protegidos
pelo Semta.
Histórias de enriquecimento fácil circulavam de boca em
boca. "Na Amazônia se junta dinheiro com rodo." Os velhos mitos do
Eldorado amazônico voltavam a ganhar força no imaginário popular. O paraíso
perdido, a terra da fartura e da promissão, onde a floresta era sempre verde e
a seca desconhecida. Os cartazes mostravam caminhões carregando toneladas de
borracha colhidas com fartura pelos trabalhadores. Eram imagens coletadas por
Chabloz nas plantações da Firestone na Malásia, sem nenhuma conexão com a
realidade que esperava os trabalhadores nos seringais amazônicos.
Afinal de contas, o que os flagelados teriam a perder?
Quando nenhuma das promessas e quimeras funcionavam, restava
o milenar recurso do recrutamento forçado de jovens. A muitas famílias do
sertão nordestino foram oferecidas somente duas opções: ou seus filhos partiam
para os seringais como soldados da borracha ou então deveriam seguir para o
front na Europa, para lutar contra os fascistas italianos e alemães. É fácil
entender que muitos daqueles jovens preferiram a Amazônia.
Os caminhos da guerra
Ao chegar aos alojamentos organizados pelo Semta, o
trabalhador recebia um chapéu, um par de alpargatas, uma blusa de morim branco,
uma calça de mescla azul, uma caneca, um talher, um prato, uma rede, cigarros,
um salário de meio dólar por dia e a expectativa de logo embarcar para a
Amazônia.
Os navios do Loyd saíam dos portos nordestinos abarrotados
de homens, mulheres e crianças de todas as partes do Brasil. Primeiro rumo ao
Maranhão e depois para Belém, Manaus, Rio Branco e outras cidades menores nas
quais as turmas de trabalhadores seriam entregues aos "patrões"
(seringalistas) que deveriam conduzi-los até os seringais onde, finalmente,
poderiam cumprir seu dever para com a pátria.
Aparentemente, tudo muito organizado. Pelo menos diante dos
olhos dos americanos, que estavam nos fornecendo centenas de embarcações e
caminhões, toneladas de suprimentos e muito, muito dinheiro. Tanto dinheiro que
sobrava para desperdiçar ainda em mais propaganda.
E esbanjar em erros administrativos que faziam, por exemplo,
uma pequena cidade do sertão nordestino ser inundada por um enorme carregamento
de café solicitado não se sabe por quem. Ou possibilitar o sumiço de mais de
1.500 mulas entre São Paulo e o Acre.
Na verdade, o caminho até o eldorado amazônico era muito mais
longo e difícil do que poderiam imaginar tanto os americanos quanto os soldados
da borracha. A começar pelo medo do ataque de submarinos alemães que se
espalhava entre as famílias amontoadas a bordo dos navios do Loyd, sempre
comboiados por caça-minas e aviões de guerra. A memória de quem viveu aquela
experiência ficou marcada por aqueles momentos em que era proibido até acender
fósforos ou mesmo falar, tempos de medo que estavam só começando.
A partir do Maranhão, não havia um fluxo organizado de encaminhamento
de trabalhadores para os seringais. Frequentemente era preciso esperar muito,
antes que as turmas tivessem oportunidade de seguir viagem. A maioria dos
alojamentos que recebia os imigrantes em trânsito era verdadeiro campos de
concentração, em que as péssimas condições de alimentação e higiene destruíam a
saúde dos trabalhadores, antes mesmo que tentassem o primeiro corte nas
seringueiras.
Não que faltasse alimento. Havia comida, e muita. Mas era
intragável, tão ruim e mal preparada que era comum ver as lixeiras dos
alojamentos cheias enquanto as pessoas adoeciam de fome. Muitos alojamentos
foram construídos em lugares infestados pela malária, febre amarela e
icterícia. Surtos epidêmicos matavam dezenas de soldados da borracha e seus
familiares nos pousos de Belém, Manaus e outros portos amazônicos.
Ao contrário do que afirmava a propaganda oficial, o
atendimento médico inexistia, e conflitos e toda sorte se espalhavam entre os
soldados já quase derrotados.
A desordem era tanta que muitos abandonaram os alojamentos e
passaram a perambular pelas ruas de Manaus e outras cidades, buscando um modo
de retornar a sua terra de origem ou de pelo menos sobreviver. Outras tantas
revoltas paralisaram alguns "gaiolas" (navios fluviais) em plena viagem,
diante das notícias alarmantes sobre a insuportável vida nos seringais.
Eram pequenos motins rapidamente abafados pelos funcionários
da Snapp ou da Sava. As viagens apareciam, então, como caminhos sem volta.
Uma nova forma de escravidão
Os que conseguiam efetivamente chegar aos seringais, depois
de três ou mais meses de viagem, já sabiam que suas dificuldades estavam apenas
iniciando. Os recém-chegados eram tratados como "brabos" - aqueles
que ainda não sabiam cortar seringa e cuja produção no primeiro ano era sempre
muito pequena. Só a partir do segundo ano de trabalho o seringueiro era
considerado "manso". Mesmo assim, desde o momento em que era
escolhido e embarcado para o seringal, o brabo já começava a acumular uma
dívida com o patrão. O mecanismo de prender o trabalhador por meio de uma
dívida interminável foi chamado de "sistema de aviamento".
Essa dívida crescia rapidamente, porque tudo que se recebia
no seringal era cobrado. Mantimentos, ferramentas, tigelas, roupas, armas,
munição, remédios, tudo enfim era anotado na sua conta corrente. Só no fim da
safra, a produção de borracha de cada seringueiro era abatida do valor de sua
dívida. Mas o valor de sua produção era, quase sempre, inferior à quantia
devida ao patrão. E não adiantava argumentar que o valor cobrado pelas
mercadorias no barracão do seringalista era cinco ou mais vezes maior do que
aquele praticado nas cidades: os seringueiros eram proibidos de vender ou
comprar em qualquer outro lugar. Os soldados da borracha descobriam que, no
seringal, a palavra do patrão era lei.
Os financiadores americanos insistiam em não repetir os
abusos do sistema de aviamento que caracterizara o primeiro ciclo da borracha.
Na prática, entretanto, o contrato de trabalho assinado entre seringalista e
soldado da borracha quase nunca era respeitado. A não ser para assegurar os
direitos dos seringalistas. Como no caso da cláusula que impedia o seringueiro
de abandonar o seringal enquanto não saldasse sua dívida com o patrão, o que
tornava a maioria dos seringueiros verdadeiros escravos, prisioneiros das
"colocações de seringa" (unidades de produção de látex em que estavam
instalados).
Todas as tentativas de implantação de um novo regime de
trabalho, bem como o fornecimento de suprimentos diretamente aos seringueiros,
fracassaram diante da pressão e do poderio das "casas aviadoras"
(fornecedores de suprimentos) e dos seringalistas que dominavam secularmente o
processo da produção da borracha na Amazônia.
Uma guerra que não terminou
Mesmo com todos os problemas enfrentados (ou provocados)
pelos órgãos encarregados da Batalha da Borracha, cerca de 60 mil pessoas foram
enviadas para os seringais amazônicos entre 1942 e 1945. Desse total, quase a
metade acabou morrendo em razão das péssimas condições de transporte,
alojamento e alimentação durante a viagem. Como também pela absoluta falta de
assistência médica, ou mesmo em função dos inúmeros problemas ou conflitos
enfrentados nos seringais.
Ainda assim o crescimento da produção de borracha na
Amazônia nesse período foi infinitamente menor do que o esperado. O que levou o
governo americano, já a partir de 1944, a transferir muitas de suas atribuições
para órgãos brasileiros. E tão logo a Guerra Mundial chegou ao fim, no ano
seguinte, os EUA se apressaram em cancelar todos os acordos referentes à
produção de borracha amazônica.
O acesso às regiões produtoras do Sudeste Asiático se achava
novamente aberto e o mercado internacional logo se normalizaria.
Terminava a Batalha da Borracha, mas não a guerra travada
pelos seus soldados. Imersos na solidão de suas colocações no interior da
floresta, muitos deles nem sequer foram avisados de que a guerra tinha
terminado, e só viriam a descobrir isso anos depois. Alguns voltaram para suas
regiões de origem exatamente como haviam partido, sem um tostão no bolso, ou
pior, alquebrados e sem saúde. Outros aproveitaram a oportunidade de criar
raízes na floresta e ali construir suas vidas. Poucos, muito poucos,
conseguiram tirar algum proveito econômico daquela batalha incompreensível,
aparentemente sem armas, sem tiros e que produziu tantas vítimas.
Pelo menos uma coisa todos os soldados da borracha, sem
exceção, receberam. O descaso do governo brasileiro, que os abandonou à própria
sorte, apesar de todos os acordos e das promessas repetidas antes e durante a
Batalha da Borracha. Só a partir da Constituição de 1988, mais de 40 anos
depois do fim da Segunda Guerra Mundial, os soldados da borracha ainda vivos
passaram a receber uma pensão como reconhecimento pelo serviço prestado ao
país. Uma pensão irrisória, dez vezes menor que a pensão recebida por aqueles
que foram lutar na Itália. Por isso, ainda hoje, em diversas cidades
brasileiras, no dia 1º de maio os soldados da borracha se reúnem para continuar
a luta pelo reconhecimento de seus direitos. A comparação é dramática: dos 20
mil brasileiros que lutaram na Itália, morreram somente 454 combatentes. Entre
os quase 60 mil soldados da borracha, porém, cerca da metade morreu durante a
guerra.
Tramita um Processo de Violação de Direitos Humanos e
Trabalho de Violação da Era Varga no Superior Tribunal de Justiça com Número
20104100000084-5.
Fonte: Revista História Viva
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