Para sociólogo da Unicamp, a esquerda brasileira precisa
compreender o funcionamento das estratégias tecnológicas para se defender de
situações como o grampo contra Lula e Dilma.
No RBA
São Paulo – Aproveitando o “gancho” do grampo e a divulgação,
na quarta-feira (16), da conversa telefônica entre o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e a presidenta Dilma Rousseff, o ex-agente de inteligência da
NSA, Edward Snowden, postou no dia seguinte, em sua conta no Twitter, uma séria
advertência ao governo brasileiro. "Going dark é um conto de fadas: três
anos depois das manchetes de escutas de Dilma, ela continua fazendo ligações
não criptografadas", escreveu Snowden. Na mensagem, ele faz uma montagem
gráfica lembrando os grampos do governo dos Estados Unidos contra a presidenta
brasileira.
O termo going dark pode ser traduzido como “movimento no
escuro”. É um termo para iniciados em linguagem cibernética. Diz respeito à
utilização da criptografia (escrita em caracteres ou cifras secretas). O sociólogo
Laymert Garcia dos Santos, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
interpreta a mensagem de Snowden como “luminosa”, e diz que a esquerda
brasileira não está percebendo que o golpe está literalmente em marcha, e que
ele é operado tecnologicamente: “Não existe uma leitura do que está
acontecendo, por parte do governo, nem do PT, nem da esquerda como um todo. As
pessoas se espantam com o processo, mas não estão se preparando para se
defender antes de as coisas acontecerem”, diz.
Entender a utilização de estratégias tecnológicas é vital
para evitar situações como o grampo contra Lula e Dilma, diz Laymert. A
capacidade de reagir e contra-atacar da esquerda brasileira, neste momento de
“ruptura com o regime democrático”, passa pela compreensão dos meios
sofisticados utilizados pelas esferas que detêm o conhecimento tecnológico. Sem
esse entendimento, a esquerda ficará mais e mais acuada.
Apesar de tudo, ainda há uma boa notícia, acredita o
sociólogo: o fato de que a esquerda começa a reagir e já há resistência ao
golpe. “Mas não basta reagir como tática defensiva. É preciso mostrar à
população o que está em jogo, mostrar onde está o problema, e não só se
defender, mas começar a atacar."
Laymert falou à RBA:
Como você analisa a declaração de Edward Snowden no twitter:
“Três anos depois das manchetes de escutas de Dilma, ela continua fazendo
ligações não criptografadas"?
No meu entender, o comentário do Snowden é pequeno, mas
luminoso. Ele mostra o despreparo do governo brasileiro e da presidenta com
relação ao próprio processo e a estratégia que está em curso de
desestabilização, na medida em que ele comenta que três anos depois de ter sido
revelado o grampo da NSA contra Dilma e outros chefes de Estado, ela ainda se
comunica sem criptografia. Significa que isso não entrou no âmbito do governo,
dos políticos ou da máquina do Estado, que precisava ter uma precaução de
defesa, e nada foi feito nesse sentido.
Não existe uma leitura do que está acontecendo, por parte do
governo, nem do PT, nem da esquerda como um todo. As pessoas se espantam com o
processo, ficam abismadas com o grau de violência, mas não estão se preparando
para se defender antes das coisas acontecerem. O governo não tem uma visão
estratégica sobre o que está acontecendo.
Esse é um problema mais da esquerda brasileira ou se pode
generalizar para a esquerda mundialmente?
Acho que tem um problema com a esquerda brasileira, que tem
um bom-mocismo e uma ingenuidade muito grande. Existem teorizações a respeito
de que tipo de política é essa, uma estratégia de produção do caos, que é feita
como guerra contemporânea. Isso não é levado em conta aqui. A pessoa que fez a
melhor leitura do que está acontecendo é o Luis Nassif, que mostra no blog dele
qual é o sentido de produção de caos como uma estratégia.
A esquerda insiste que o problema é Moro, mas Moro é apenas
o operador da estratégia, ele nem tem preparo para pensar essa estratégia, não
tem vocabulário, nem pensamento para fazer uma estratégia como essa. O foco não
está onde deveria estar, que é onde o Nassif chamou de “alto comando”, que é a
procuradoria, Janot, a equipe dos procuradores, o nível de articulação do alto
judiciário, que é a cabeça dessa estratégia de desestabilização. Lula argumenta
que há esperança na instância superior, de que quando chegar, no limite, no
Supremo, vai haver uma reversão das violências. É uma crença que não tem mais
base, porque, mais do que sinais, há atos e omissões que mostram que não cabe
mais a esperança de que a Constituição será em última instância defendida. A
Constituição já foi violada “N” vezes nos últimos meses, e nas últimas semanas
de modo absolutamente escandaloso. Não cabe mais a expectativa de que em última
instância a República será salva.
Assim como em relação à tecnologia, a esquerda também é
ingênua quanto ao Direito, como disse o jurista Bandeira de Mello: “A esquerda
tem um defeito, a meu ver: é o desprezo pelo Direito”?
Exatamente. Acho até que esse despreparo num terreno tem a
ver com o outro. O despreparo do governo em lidar com a questão da criptografia
não diz respeito só à questão tecnológica. É, também, mas é sobretudo
estratégico. Não sei onde está a inteligência do governo. Não sei onde estão as
pessoas que sabem fazer a leitura sobre essa desestabilização que se compara
com outras que já aconteceram no passado. Parece que não tem quem faça essa
leitura.
No diálogo da Dilma com o Lula, sobre a condução coercitiva
do Lula, dá impressão de que eles não estavam sabendo nada do que estava acontecendo!
Mostra que não existia da parte da assessoria deles ninguém alertando em que pé
estava o jogo. Por outro lado, você vê que a militância está acordando, e
existe energia para resistir. Mas só existe energia pra resistir se houver
rumo, e só há rumo se houver clareza com relação a saber em que jogo se está.
Estamos à beira de uma realidade fascista que pode
predominar?
Não é que isso já está no ar, já está acontecendo. Minha
referência é o que aconteceu nos anos 1930, com a progressão dos enunciados até
se chegar à enunciação não só da solução final, mas da guerra total. Não acho
que o fascismo vai vir, ele já está aqui.
Mas ele pode ser organizado e se tornar dominante?
Claro que pode. Estamos vivendo uma espécie de fascismo de
rua, mas ele é concomitante com toda uma argumentação jurídica que está sendo
construída, que é ilegal e inconstitucional, uma ruptura com o regime
democrático e com os princípios da Constituição. Estamos vendo a construção
disso tudo, através das violências jurídicas e do estabelecimento de uma nova
jurisprudência, entre aspas, que lembra muito o tempo do fascismo.
No entanto, no próprio Supremo existem ministros como Luís
Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski e mesmo Marco Aurélio Mello que têm
defendido pontos de vista constitucionais...
Mas tem que ver concretamente o que está sendo produzido do
ponto de vista jurídico como legitimização de algo que é impensável e
inadmissível em termos constitucionais, e que continua evoluindo.
Diante desse quadro, há possibilidade de a sociedade e as
instituições reagirem?
Acho que potencial para reagir é claro que tem. Mas acontece
que, primeiro, as vozes que elaboram alguma coisa são pouquíssimo ouvidas, a
começar pelos próprios juristas, porque tem toda uma despotenciação das vozes
críticas; mas, por outro lado, da parte do governo e do próprio PT tem que ir
além da reação. Começou até se esboçar uma resistência. Antes não existia nem
resistência. Mas a resistência não pode ser só uma coisa defensiva, tem que
avançar, porque senão não vai dar tempo.
Avançar como?
É preciso dar inteligibilidade para a suposta maioria da
população brasileira, com atos fortes, mostrar à população o que está em jogo,
mostrando onde está o problema, e não só se defender, mas começar a atacar,
porque até agora não houve ataque. Antes não tinha reação. Agora começou a ter
reação, mas até agora a reação é de pura defesa.
O que seria uma reação de ataque?
Por exemplo, anunciar por cadeia de rádio e televisão o
corte dos subsídios (por meio de verbas publicitárias) dos meios de comunicação
golpistas. Ficaria claro para a população um pronunciamento nesse sentido. A
gente já passou da fase de tentar negociar. Eles não negociam nada. Não tem o
que negociar.
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