Em artigo publicado pela imprensa cubana nesta segunda-feira
(28/03), o líder cubano Fidel Castro comentou as declarações do presidente dos
Estados Unidos, Barack Obama, durante sua histórica visita a Cuba, realizada na
última semana.
No texto, intitulado “O irmão Obama”, Fidel reflete sobre a história das relações entre os dois países nos últimos 60 anos e critica as “palavras melosas” do presidente norte-americano em seu discurso realizado na última terça-feira (22/03) no Gran Teatro Alicia Alonso, em Havana.
Segundo Fidel, as declarações de Obama em prol de “esquecer
o passado e olhar para o futuro” desconsideram o histórico de agressões dos EUA
contra Cuba. “Depois de um bloqueio desapiedado que já dura quase 60 anos, e os
que morreram nos ataques mercenários a barcos e portos cubanos, um avião
comercial repleto de passageiros que explodiu em pleno voo, invasões
mercenárias, múltiplos atos de violência e de força?”, questiona o líder
cubano.
Fidel diz ter esperado uma “conduta correta” de Obama em
Cuba, já que a “origem humilde” e a “inteligência natural” do presidente
norte-americano “são evidentes”. Porém, diz o líder cubano, Obama falhou em não
mencionar os povos nativos das Américas ao ressaltar a história compartilhada
de Cuba e EUA com relação à escravidão dos povos africanos, tragédia formadora
dos dois países.
Fidel também chama a atenção para o papel da Revolução
Cubana na mitigação do racismo na ilha, assim como o auxílio às lutas de
independência de países africanos como Angola, Moçambique e Guiné Bissau contra
o “domínio colonial fascista de Portugal”.
“Que ninguém tenha a ilusão de que o povo deste nobre e
abnegado país renunciará à glória e aos direitos, e à riqueza espiritual que
ganhou com o desenvolvimento da educação, da ciência e da cultura”, escreve
Fidel sobre os termos da reaproximação entre Cuba e EUA, anunciada em dezembro
de 2014 pelos governos dos dois países após 53 anos de ruptura.
“Advirto ademais que somos capazes de produzir os alimentos
e as riquezas materiais de que necessitamos com o esforço e a inteligência de
nosso povo. Não necessitamos que o império nos dê nada de presente. Nossos
esforços serão legais e pacíficos, porque é nosso o compromisso com a paz e a
fraternidade de todos os seres humanos que vivemos neste planeta”, conclui
Fidel.
Leia abaixo a íntegra do artigo de Fidel Castro sobre a
visita de Obama, traduzido para o português:
O irmão Obama
Os reis da Espanha nos trouxeram os conquistadores e donos,
cujas impressões digitais ficaram nas faixas de terra entregues aos buscadores
de ouro nas areias dos rios, uma forma abusiva e sufocante de exploração cujos
vestígios se podem ver desde o ar em muitos lugares do país.
O turismo hoje, em grande parte, consiste em mostrar as
delícias das paisagens e saborear os excelentes alimentos de nossos mares, e
sempre que se compartilhe com o capital privado das grandes corporações
estrangeiras, cujos lucros, se não atingem bilhões de dólares per capita, não
são dignos de nenhuma atenção.
Já que me vi obrigado a mencionar o tema, devo acrescentar,
principalmente para os jovens, que poucas pessoas se dão conta da importância
de tal condição neste momento singular da história humana. Não direi que o
tempo se perdeu, mas não vacilo em afirmar que não estamos suficientemente
informados, nem vocês nem nós, dos conhecimentos e das consciências que
deveríamos ter para enfrentar as realidades que nos desafiam. O primeiro a
levar em conta é que nossas vidas são uma fração histórica de segundo, que
ademais há que compartilhar com as necessidades vitais de todo ser humano. Uma
das características deste é a tendência à supervalorização de seu papel, o que
contrasta por outro lado com o número extraordinário de pessoas que encarnam os
sonhos mais elevados.
Contudo, ninguém é bom ou mau por si mesmo. Nenhum de nós
está desenhado para o papel que deve assumir na sociedade revolucionária. Em
parte, os cubanos tivemos o privilégio de contar com o exemplo de José Martí.
Pergunto-me inclusive se ele tinha que cair ou não em Dois Rios, quando disse
“para mim é chegada a hora”, e fez carga contra as forças espanholas
entrincheiradas em uma sólida linha de fogo. Não queria regressar aos Estados
Unidos e não havia quem o fizesse regressar. Alguém arrancou algumas folhas de
seu diário. Quem tem essa pérfida culpa, que foi sem dúvida obra de algum
intrigante inescrupuloso? Conhecem-se as diferenças entre os chefes, mas jamais
indisciplinas. “Quem tentar apropriar-se de Cuba recolherá o pó de seu solo
afogado em sangue, se não perecer na luta”, declarou o glorioso líder negro
Antonio Maceo. Reconhece-se igualmente em Máximo Gómez, o chefe militar mais
disciplinado e discreto de nossa história.
Olhando a partir de outro ângulo, como não admirar-se com a
indignação de Bonifácio Byrne quando, desde a distante embarcação que o trazia
de volta a Cuba, ao divisar outra bandeira junto à da estrela solitária,
declarou: “Minha bandeira é aquela que jamais foi mercenária…”, para
acrescentar de imediato uma das mais belas frases que jamais escutei: “Mesmo
que desfeita em pequenos pedaços, é minha bandeira … nossos mortos alçando os
braços ainda saberão defendê-la!…”. Tampouco esquecerei as acesas palavras de
Camilo Cienfuegos naquela noite, quando a várias dezenas de metros bazucas e
metralhadoras de origem norte-americana, em mãos contrarrevolucionárias,
apontavam para o terraço em que estávamos. Obama nasceu em agosto de 1961, como
ele mesmo explicou. Mais de meio século transcorreria desde aquele momento.
Vejamos, contudo, como pensa hoje nosso o ilustre visitante:
“Vim aqui para deixar para trás os últimos vestígios da
Guerra Fria nas Américas. Vim aqui estendendo a mão de amizade ao povo cubano”.
De imediato um dilúvio de conceitos, inteiramente novos para
a maioria de nós:
“Ambos vivemos em um novo mundo colonizado por europeus”.
Prosseguiu o presidente norte-americano. “Cuba, assim como os Estados Unidos,
foi constituída por escravos trazidos da África; igualmente aos Estados Unidos,
o povo cubano tem heranças em escravos e escravistas”.
As populações nativas não existem em absoluto na mente de
Obama. Tampouco diz que a discriminação racial foi varrida pela Revolução; que
a aposentadoria e o salário de todos os cubanos foram decretados por esta antes
que o senhor Barack Obama completasse 10 anos. O odioso costume burguês e
racista de contratar esbirros para que os cidadãos negros fossem expulsos de
centros de recreação foi varrido pela Revolução Cubana. Esta passaria à
história pela batalha que lutou em Angola contra o apartheid, pondo fim à
presença de armas nucleares em um continente de mais de um bilhão de
habitantes. Não era esse o objetivo de nossa solidariedade, mas ajudar os povos
de Angola, Moçambique, Guiné Bissau e outros do domínio colonial fascista de
Portugal.
Em 1961, apenas um ano e três meses depois do triunfo da
Revolução, uma força mercenária com canhões e infantaria blindada, equipada com
aviões, foi treinada e acompanhada por barcos de guerra e porta-aviões dos
Estados Unidos, atacando de surpresa nosso país. Nada poderá justificar aquele
traiçoeiro ataque que custou a nosso país centenas de baixas entre mortos e
feridos. Da brigada de assalto pró-ianque, em nenhuma parte consta que se
tivesse podido evacuar um só mercenário. Aviões ianques de combate foram
apresentados ante as Nações Unidas como equipamentos cubanos sublevados.
É sobejamente conhecida a experiência militar e o poderio
desse país. Na África creram igualmente que Cuba revolucionária seria
facilmente posta fora de combate. O ataque pelo Sul de Angola por parte das
brigadas motorizadas da África do Sul racista as leva até as proximidades de
Luanda, a capital angolana. Ali se inicia uma luta que se prolongou não menos
de 15 anos. Não falaria disto, a menos que tivesse o dever elementar de
responder ao discurso de Obama no Gran Teatro Havana de Alicia Alonso.
Não tentarei tampouco dar detalhes, apenas enfatizar que ali
se escreveu uma página honrosa da luta pela libertação do ser humano. De certa
forma, eu desejava que a conduta de Obama fosse correta. Sua origem humilde e
sua inteligência natural eram evidentes. Mandela ficou preso por toda a vida e
se converteu em um gigante da luta pela dignidade humana. Um dia chegou a
minhas mãos um exemplar do livro em que se narra parte da vida de Mandela e,
que surpresa!: estava prefaciado por Barack Obama. Folheei rapidamente. Era
incrível o tamanho da minúscula letra de Mandela precisando dados. Vale a pena
ter conhecido homens como aquele.
Sobre o episódio da África do Sul devo assinalar outra
experiência. Eu estava realmente interessado em conhecer mais detalhes sobre a
forma com que os sul-africanos tinham adquirido as armas nucleares. Tinha
apenas a informação muito precisa de que não passavam de 10 ou 12 bombas. Uma
fonte segura seria o professor e pesquisador Piero Gleijeses, que havia
redigido o texto de “Missões em conflito: Havana, Washington e África
1959-1976”; um trabalho excelente. Eu sabia que ele era a fonte mais segura do
ocorrido e assim me comuniquei com ele; respondeu-me que não tinha mais falado
do assunto, porque no texto tinha respondido às perguntas do companheiro Jorge
Risquet, que fora embaixador ou colaborador cubano em Angola, muito amigo seu.
Localizei Risquet; já em outras importantes ocupações, estava terminando um
curso do qual lhe faltavam várias semanas. Essa tarefa coincidiu com uma viagem
bastante recente de Piero a nosso país; eu havia avisado que Risquet já tinha
certa idade e sua saúde não era ótima. Poucos dias depois ocorreu o que eu
temia. Risquet piorou e faleceu. Quando Piero chegou não havia nada a fazer,
exceto promessas, mas eu já havia obtido a informação sobre o que se
relacionava com essa arma e a ajuda que a África do Sul racista tinha recebido de
Reagan e Israel.
Não sei o que Obama terá a dizer agora sobre esta história.
Ignoro se sabia ou não, embora seja muito duvidoso que não soubesse
absolutamente nada. Minha modesta sugestão é que reflita e não trate agora de
elaborar teorias sobre a política cubana.
Há uma questão importante:
Obama pronunciou um discurso em que utiliza as palavras mais
adocicadas para expressar: “Já é hora de esquecermos o passado, deixemos o
passado, miremos o futuro, miremo-lo juntos, um futuro de esperança. E não vai
ser fácil, haverá desafios, e vamos dar tempo a estes; mas minha estada aqui me
dá mais esperanças do que podemos fazer juntos como amigos, como família, como
vizinhos, juntos”.
Supõe-se que cada um de nós corria o risco de um infarto ao
escutar estas palavras do presidente dos Estados Unidos. Depois de um bloqueio
desapiedado que já dura quase 60 anos, e os que morreram nos ataques
mercenários a barcos e portos cubanos, um avião comercial repleto de
passageiros que explodiu em pleno voo, invasões mercenárias, múltiplos atos de
violência e de força?
Que ninguém tenha a ilusão de que o povo deste nobre e
abnegado país renunciará à glória e aos direitos, e à riqueza espiritual que
ganhou com o desenvolvimento da educação, da ciência e da cultura.
Advirto ademais que somos capazes de produzir os alimentos e
as riquezas materiais de que necessitamos com o esforço e a inteligência de
nosso povo. Não necessitamos que o império nos dê nada de presente. Nossos
esforços serão legais e pacíficos, porque é nosso o compromisso com a paz e a
fraternidade de todos os seres humanos que vivemos neste planeta.
Via – Jornal Floripa
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