"Na tela do computador os internautas não observam as pessoas
humanas atacadas como pessoas, mas como um papel em branco, desumanizado, e
desencadeiam uma absurda disputa para ver quem vai agradar melhor seu líder
violento".
Vivemos um momento conturbado. Há medo e ódio nas redes e
nas ruas. Muitos se aventuram em afirmar que a cordialidade do Brasil
desapareceu. No entanto, quando Sérgio Buarque de Holanda cunhou, em Raízes do
Brasil, a cordialidade brasileira, o tipo humano de homem cordial (fundamentado
nas ideias de tipo ideal de Max Weber), ele descrevia um comportamento que não
elimina a violência. A minoria talvez entenda, mas o Homem Cordial, em Holanda,
se refere exatamente à personalidade dada a atitudes extremas, de grande
oscilação, portanto, possível de atuar com extrema violência. A violência do
brasileiro, dentro dos moldes pensados pelo autor, é expressa no momento em que
o brasileiro se mostra incapaz de assegurar um comportamento contra a
cidadania, à padrões legais e a à ordem pública.
O texto de Holanda descreve o comportamento do homem cordial
como caracterizado por aquele que não pretende assumir responsabilidades, mas
obedece a sugestões e incitações, exatamente por isso. Como o Adão bíblico, que
responsabiliza a mulher e o criador, afirmando a mulher que tu fizeste me deu
de comer, e “assim eu fiz”, o homem cordial agiria seguindo a vontade de quem o
incita, sem perceber sua responsabilidade ou omissão no ato de aceitar a ordem
como absoluta.
É totalmente diferente da banalidade do mal arenditiana, por
exemplo, em que a mediocridade do burocrata, que faz preciosa e meticulosamente
seu trabalho, sem se importar com a moralidade do solicitado, e depois dá de
ombros: foram ordens. Aqui o que há é um não pensar, um não analisar, e isso
torna a reação do brasileiro a incitação uma imensa pólvora na mão de quem acende
pavios. Aqui pesa é o desejo gregário, a força do grupo funciona como alavanca
para expressões desprovidas de análise ou meticulosidade.
Um exemplo bem evidente deste processo se revelou quando foi
encontrado o grupo de Facebook “QLS”, que o Ministério Público apontou como
responsável pelos ataques racistas a jornalista Maria Júlia Coutinho, a ‘Maju’,
e a atrizes como Thaís Araújo. “QLC” é sigla para “Que Loucura Cara”’, o grupo
possuía milhares de participantes, e um de seus líderes, classificado pelos investigadores
como “Extremamente racista, homofóbico e com desvio de caráter muito grande”
era seguido por com 25 mil internautas. Ele e outros líderes do grupo assumiam
a “chefia” do ataque, escolhendo alvo e que tipo de ódio deveria ser
demonstrado a ele.
Como este grupo, outras dezenas, com milhares de seguidores
desenvolvem o mesmo tipo de prática. Assustados, muitos se perguntam a razão.
Tenho algumas observações sobre o tema. Vamos a elas.
Notadamente jovens, os internautas chamavam a ação de ódio
de “treta”, “onda”, “loucura”, “diversão”. Os líderes do linchamento virtual
eram tidos como “grandes”, “muito loucos”, “manos grandes”. E a ação acontecia
de forma direcionada, em escala, atacando o perfil do alvo, suas postagens, com
todo tipo de ódio possível. Era um verdadeira corrida para ver que fazia a
mensagem mais carregada, basta ler os textos em questão.
Mas porque os jovens estão competindo pela vaga de pior
internauta do milênio? Que tipo de satisfação está por trás desse movimento?
Porque isto acontece?
A situação, obviamente me incomodou apensar, visto que há
mais de doze anos estudo crimes de ódio. Lembrei-me de uma entrevista que
concedi certa vez à revista Carta Capital, em que comentava porque as
manifestações de ódio disparavam nas redes (isso foi medido pela Safernet, que
mapeia este tipo de discurso), quando o deputado federal Jair Bolsonaro usava a
palavra no mesmo sentido.
Falta exemplo a estes jovens, falta educação para Direitos
Humanos, falta internalizar conceitos como cidadania e dignidade humana.
Bolsonaro acaba desempenhando, infelizmente, como os líderes da comunidade
citada, o “mano” dando carta branca para a livre expressão da violência, sem
qualquer medida coercitiva. Na tela do computador os internautas não observam
as pessoas humanas atacadas como pessoas, mas como um papel em branco,
desumanizado, e desencadeiam uma absurda disputa para ver quem vai agradar
melhor seu líder violento.
Muitos exemplos recentes demonstram essa faceta de submissão
das massas à violência dos que tem como líderes, e é possível observar o fato
na manifestação que agrediu o Ministro do STF, Teori Zavascki , na frente de
sua casa, com gritos e som alto, respondendo, entre outros, ao chamado do
cantor Lobão no Twitter, para execução de violência contra o Ministro e sua
família por sua decisão de solicitar de volta os processos referentes ao
ex-presidente Lula. Nenhuma instituição merece ser respeitada para líderes
inflamados. É preciso que juízes voltem a ser juízes, e para tanto, sua vida
privada não pode um elemento em disputa.
Afirmo novamente: isto não é a final de um campeonato de
futebol, um último capítulo de novela, é uma Nação. Importa estabelecer limites
para quem se comporta continuadamente como um radical fanático, como um membro
de torcida organizada fora de si que, vendo sua decepção em campo, simplesmente
resolve quebrar tudo. Há que se ter muito respeito às instituições.
Obviamente, os que aceitam responder à solicitação do cantor
devem ser punidos, mas também ele. Sem punir adequadamente os que conclamam
violência, como preveniremos a questão? No Brasil, crimes de ódio carecem de
legislação específica, inclusive para incluir a tipificação de linchamento
(punindo o grupo, não apenas o mandante), mas também para evitar essa
impunidade que transforma o Brasil em um barril de pólvora nômade. Não é
possível que jornalistas incitem claramente que se soltem todas bestas feras em
cima de pessoas (como fez Rodrigo Constantino em sua lista de celebridades
brasileiras a serem boicotadas, recentemente), como tem feito uma parte da
direita, senão toda, de maneira abusiva. Quem conclama o ódio é tão responsável
pelos atos praticados por seus seguidores, como os brasileiros cordiais que se
submetem. Precisamos, urgentemente, de uma legislação que afirme isso.
Via Jornal GGN
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