Não é o propósito deste artigo tratar das dificuldades
econômicas que o Brasil está enfrentando no momento presente. Todos sabemos a
respeito do aprofundamento do quadro recessivo, do aumento do desemprego e da
redução sistemática da capacidade do Estado em oferecer os serviços básicos de
cidadania a sua população.
É de amplo conhecimento também que o quadro atual guarda
relação íntima com a opção realizada pela Presidenta Dilma logo após a vitória
eleitoral de outubro de 2014. Naquele instante, ela resolveu abandonar o
programa de governo que apresentara à população e entregou a condução da política
econômica nas mãos dos mais legítimos representantes do financismo.
Os resultados vieram na sequência. Convencida de que o
essencial seria combinar a mistura explosiva de juros elevados com cortes nas
despesas públicas, a candidata do coração valente converteu-se na fiadora
entusiasta da política do austericídio. O País iniciou uma perigosa aventura
ladeira abaixo, onde a meta principal do governo era centrada no seguinte
binômio: cortar gastos sociais e promover arrocho monetário.
Ocorre que nem tudo que atinge o nível do péssimo tem como
única opção sua melhoria. Assim como ainda não chegamos ao fundo do poço, esse
quadro de perversidade social e econômica tem todas as condições de se tornar
ainda mais dramático. E aqui eu me refiro explicitamente à possibilidade de
êxito da estratégia golpista em curso e do eventual afastamento de Dilma da
Presidência da República. Há sérios riscos de um enorme retrocesso, e não
apenas em termos da colocação em xeque dos fundamentos do Estado democrático de
direito. Apesar da gravidade da crise, é importante percebermos que a coisa
pode piorar, e muito.
Nesse caso, estaria aberta a alternativa de montagem de uma
equipe de governo sob a batuta do vice Michel Temer. Seu partido, o PMDB,
apresentou há alguns meses um programa de saída para a crise, que seu recebeu o
sugestivo título de“Uma ponte para o futuro”. Ali estão apresentadas as
propostas que expressariam a divergência da direção da agremiação com relação à
condução da política econômica de Dilma. Porém, a leitura atenta do documento
revela a essência conservadora de suas sugestões.
Na verdade, ao contrário do que deixa a entender, o que o
texto oferece ao leitor é uma verdadeira “ponte para o passado”. Ali mantém-se
o diagnóstico de que os maiores problemas enfrentados hoje pelo Brasil são a
crise fiscal, o suposto descontrole das contas públicas e a retomada da
inflação. Assim, a solução passaria pela retomada do tripé da política
macroeconômica, para conferir maior credibilidade ao governo. E nesse ponto o
programa peemedebista se articula com as ideias dos economistas vinculados ao
tucanato, cuja expressão maior agora é representada por Armínio Fraga. Além
disso, vale lembrar que um dos nomes cogitados para comandar a área econômica
do governo de “transição” é Henrique Meirelles, ex tucano, atual
correligionário de Temer e sempre quadro bem preparado da banca internacional.
Isso significa que a taxa oficial de juros, a SELIC, deveria
ser mantida nos níveis atuais ou ainda mais elevados, pois seria o único
mecanismo para evitar a alta dos preços. Isso significaria aumentar ainda mais
a extração de superávit primário, de forma a assegurar tranquilidade ao sistema
financeiro. Mas para obter esse resultado, o novo governo deveria reduzir ainda
mais as despesas orçamentárias com a área social e com os investimentos.
Afinal, a mágica embutida na armadilha do superávit primário é justamente
deixar de fora do cálculo as despesas de natureza financeira, ou seja, aqueles
pagamentos destinados a cobrir as obrigações com juros e serviços da dívida
pública.
Há uma tentativa em marcha de promover a desconstrução dos
avanços obtidos na Constituição, cujos dispositivos asseguram à população o
acesso a valores universais como educação, saúde e previdência social, por
exemplo. O argumento falacioso cada vez mais difundido é que os direitos ali
previstos foram incluídos em 1988 e não cabem mais no orçamento nos dias de
hoje.
Os golpistas pretendem dar continuidade às mudanças
iniciadas quando Joaquim Levy ocupava o Ministério da Fazenda e que foram
mantidas mesmo depois da sua substituição por Nelson Barbosa. Trata-se de
retirar direitos na área de proteção do trabalhador, a exemplo do seguro
desemprego, do abono salarial, do auxílio doença e outros benefícios previsto
na CLT. Trata-se de retirar direitos no sistema de previdência social, por meio
da divulgação enganosa de falsos déficits estruturais do modelo gerenciado pelo
INSS e da solução milagrosa que viria sob a forma de uma “reforma
previdenciária”.
O programa liberalóide do golpismo pretende restaurar a
ideia do Estado mínimo, com a intenção de ampliar o leque de alternativas para
o processo de acumulação de capital. Com isso, aprofunda as sugestões de
privatização de empresas públicas e a generalização de concessões e permissões
de serviços públicos ao capital privado. Pegando uma carona oportunista na
crise a que a Petrobrás está atualmente submetida, cria-se um movimento para
jogar a opinião contra a existência de empresas estatais. Em um cenário de
depressão das atividades econômicas, uma venda eventual de tal patrimônio seria
realizada a preços bastante reduzidos. Uma triste repetição daquilo que foi a
entrega da Vale, das empresas de telefonia e de eletricidade sob a batuta de
FHC.
Outra frente de ação do retrocesso seria a tão falada
independência do Banco Central. Os representantes desse pensamento neoliberal
não se cansam de insistir que os problemas da inflação e do gasto público
excessivo são explicados pela chamada “interferência política” na condução da
política monetária. Assim, clamam por uma falaciosa neutralidade técnica na
direção do Banco Central, que seria obtida por meio dessa autonomia radical a
ser conferida por lei a seus diretores, que teriam um mandato fixo e que seriam
inamovíveis partir da posse.
O problema é que não existe um saber isento ou neutro na
formulação e na implementação da política econômica. A outorga de um imenso
poder a uma tecnocracia para decidir como bem entender a respeito de aspectos
essenciais da política monetária é um movimento antidemocrático e
antirepublicano. Seria a perpetuação do encastelamento do financismo no comando
de uma agência do governo federal que deveria, ao contrário do que tem feito há
décadas, promover a fiscalização e a regulação do sistema financeiro.
Na linha da distribuição de renda e da remuneração das
camadas da base da pirâmide social, o discurso dos apoiadores do golpe propõe
abertamente a revogação da atual lei de valorização real do salário, bem como a
introdução de regras para promover a desvinculação do salário mínimo dos pisos
de benefícios da previdência social. Com isso, estaríamos frente à real
possibilidade de redução ainda mais expressiva das conquistas obtidas ao longo
da última década.
Enfim, como se pode perceber, é imensa a lista de malefícios
que uma eventual vitória golpista poderia promover em nosso País. Seria a
trilha para retroagir a um Brasil do século passado. Corremos o risco de
voltarmos a ser um país muito mais marcado pela desigualdade socioeconômica do
que essa ainda existente e pela eliminação de todo e qualquer traço de um
Estado capaz de operar como estímulo ao desenvolvimento inclusivo e
sustentável.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de
Paris 10 e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira
do Governo Federal.
Via – Jornal GGN
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