Quando dei por gente a primeira vez, num sertão distante no
tempo, profundo na geografia do país, já havia um tempo negro entre nós, e a
força já fazia conosco o mal que a força sempre faz.
Quando meus ouvidos de menino magro e triste nasceram para a
música a primeira vez, fazia um tempo que era de sussurros, de meias-palavras,
de coisas não ditas, de pessoas que se iam para não mais voltar. O que me
chegava pelo rádio, naquele lugar tão longe, falava de coisas que eu ainda não
entendia direito, de coisas que eu ainda aprenderia, num longo caminho que mal
começara.
Havia um sujeito de bigodes enormes que encantava, que
parecia falar com a gente, diretamente, sem intermediários. O menino que eu era
fantasiava aquele sujeito cuja música me tocava tanto, embora falasse de coisas
tão distantes de mim. Eu não tinha identidade real com aquela música. Havia um
engenho, é verdade. Mas nele, o que me encantava mesmo, muito mais que a doçura
espalhada no ar, eram as engrenagens da moenda. Era um engenho velho, ainda
puxado a bois, e aquelas engrenagens eram um enorme brinquedo. Fascinavam-me
aqueles movimentos, fascinavam-me aqueles tachos enormes, fumegantes. Mas eram
tristes, muito tristes, aqueles pobres bois e aqueles homens pobres e cansados,
aos meus olhos magros nos quais a miopia começava a erguer sua morada.
Eu não era alegre, nunca fui. Era pequeno e medroso, e
corria de bichos e de rios. Era um menino construído em ossos e tristeza, em
magreza e solidão. E já tinha, desde aquela época, a mesma lágrima verde que
teima em habitar em mim, o mesmo olhar pronto a se derramar pelas dores
daqueles que eu nunca vi.
Com tanta falta de identidade, aquele homem sério de bigodes
enormes cantava para mim, com a voz saída de dentro daquela maravilhosa caixa,
que meu pai guardava com zelo de avarento, num lugar de honra na sala da casa,
a parecer mais um objeto sagrado em mesa de altar, com toalhinha branca como
forro, com uma capa cuidadosamente bordada a lhe proteger da poeira e dos
olhares invejosos. Naquele rádio, o menino triste que eu sempre fui ouviu falar
naquele homem de nome tão comprido e volumoso quanto o seu assustador bigode. O
locutor anunciou, pausadamente, aqueles seis nomes, para resumi-los depois a um
único, do qual jamais esqueceria. Naquele rádio, o mesmo locutor anunciou
aquela música, que não tinha nada a ver comigo, mas que era como se tivesse
sido feita para mim. No caminho de lá até aqui aprendi que a vida é cheia de
contradições, e que aquela talvez fosse apenas a mais simples delas.
A vida, entre acasos e determinações, carregou-me de um lado
a outro dos sertões cearenses. Daquele lugar perdido nos confins do Ceará, sem
nome no mapa, filho órfão do trem que se foi sem olhar para trás, palmilhei
légua por légua do sertão e cruzei, entre outros miúdos e sem nome, o
Jaguaribe, o Banabuiú e o Acaraú, até arranchar-me cansado e perdido na margem
esquerda deste último. Deixei o lugar seco e ossudo em que vivi, equidistante
entre a temporária valentia do velho rio das onças e a verdura melancólica da
chapada do Araripe. Vim para este outro lugar, entre um rio que vez por outra
se rebela e lambe ruas com labaredas de água, carregando consigo gentes e casas
pobres, e uma serra que me acena todos os dias pela manhã, fêmea voluptuosa a
me convidar, incansavelmente, a dormir consigo.
O menino triste e magro, que já carregava um olhar lacrimoso
e míope, veio ser aqui um homem sério e triste, com o mesmo olhar verde aquoso
escondido por trás das lentes dos óculos, inseparável companheiro. Mas foi aqui
que compreendi melhor o homem de nome comprido e suas canções. Compreendi que
eu também fora, contraditoriamente, um menino alegre feito um rio. É que
alegria não pode ser estado permanente. É transitório que se alterna, que vai e
que volta, mas que no fim do dia sempre desequilibra o prato da balança em
desfavor da tristeza. Feito o homem de bigodes que cantava, também fiz o meu
caminho, fileiras de milho verde ondeando, quando havia chuvas e milharais.
O tempo negro havia sido espantado, e ingenuamente julgamos
que era para sempre. Voltamos a cantar, a cantar muito mais, julgando que
éramos felizes e que não éramos mudos, que éramos donos da nossa própria voz e
do nosso próprio destino, que faríamos nós mesmos o nosso caminho.
Aqui, nessa cidade encravada entre uma serra e um rio,
encontrei muitas vezes o seu filho cantor de canções que me tocavam, desde que
dei por gente a primeira vez, num lugar e num tempo cada vez mais distantes.
Aqui vi, embevecido, o homem de bigodes a cantar ou simplesmente a conversar,
mansa voz por trás de olhos que se apertavam, curiosos e inquiridores das
coisas do mundo.
Mas agora, que um tempo negro ameaça voltar, que a força
tenta, novamente, fazer o mal que a força sempre faz, não vejo mais aquele
homem de bigodes grossos, de nome comprido de fazer cansar a palavra da gente.
Exilado, quem sabe, em si mesmo; perdido em caminhos que desconhecemos, quem
sabe. Ou, talvez, o homem tenha voltado em busca do menino que foi, e esteja
por aí a procurar por galos, noites e quintais. Talvez esteja à cata de novas
canções, de novos versos.
Não sei desse homem, por onde ele anda, se sente a mesma e
desesperadora angústia de um goleiro na terrível hora do gol. Sei que gostaria
de abraçá-lo, de dizer muito obrigado por tantas canções belíssimas. De dizer
muito obrigado por essa, em especial, que ele compôs para mim, mesmo que não o
saiba. Gostaria de dizer a ele que essa canção foi que me trouxe até aqui, e é
que me faz, olhando o tempo negro que se avizinha, cantar muito mais, para
conjurar de volta o tempo da alegria e da felicidade.
Não sei se sou feliz ou não mas, com certeza, não sou mudo.
Por isso, é que hoje canto muito mais.
Assista a Chico Anísio cantando Galos, Noites e Quintais em
homenagem a Belchior:
*Joan Edesson de Oliveira é educador, Mestre em Educação
Brasileira pela Universidade Federal do Ceará. O artigo foi publicado
originalmente no livro Para Belchior Com Amor.
Via – Portal Vermelho
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