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segunda-feira, 15 de junho de 2015

O dia em que a Folha voltou a ser a Folha


Por Luis Nassif
No GGN

Com dez anos de atraso, a Folha retomou – não se sabe se definitiva ou pontualmente – a saga que a levou a ser, nos anos 70, um refrigério dentro das limitações impostas pela ditadura e, nos anos 80 e 90, um jornal amado.

O jornal não se fez simplesmente aderindo às diretas. Durante os anos 80 e 90, passou a representar a jovem geração moderna, com seus hábitos arejados, novos padrões culturais, que vinham à tona com a gradativa descompressão da sociedade civil e com a modernização de hábitos e costumes.

Representava novos costumes, nova tolerância, a defesa contra toda espécie de corporativismo, a temática cultural nova.

Mesmo a porraloquice era perdoada, as matérias construídas como produto, imitando uma Veja que ainda não se metera no esgoto do jornalismo. Com todas suas deficiências, foi o jornal que melhor expressou o grande pacto civilizatório representado pela Constituição de 1988.

Os leitores sabiam que esbirros autoritários de quem fosse,  demonstrações de poder de tiranetes, abusos contra a consciência cívica em algum momento provocariam uma reação da Folha, através de editoriais, reportagens ou de colunistas que gozavam de relativa margem de liberdade.

Era o único jornal de quem se poderia esperar investir contra a manada, embora, muitas vezes, conduzisse seus shows de linchamento.

As pesquisas internas mostravam um perfil de leitor essencialmente social-democrata, com uma maioria tucana, um tucanato liberal, com o perfil de Covas e Montoro; um bom percentual petista, e uma faixa conservadora-civilizada, sem enveredar pelo bolor do conservadorismo anacrônico de outros veículos.

Há dez anos, ainda líder do mercado de opinião no país, o jornal jamais poderia ter se colocado a reboque do jornalismo mais execrável já produzido em tempos modernos, o esgoto que Roberto Civita plantou na Abril e jorra intermitente da Veja.

Dia a dia, todos os grandes momentos da Folha foram sendo engolfados por essa incorporação do espírito Veja.  A coragem de defender as eleições diretas, o dia em que se insurgiu com as jogadas da Veja com Golbery,  o editorial destemido com que encarou Fernando Collor, no auge de seu poder, os grandes gestos passaram a ser encobertos por loas à ditabranda, o fim da diversidade que marcou a melhor fase do jornal e a celebração diuturna do preconceito e do ódio.

Cega, sem saber como se colocar na transição mais complicada já enfrentada por grupos de mídia, nos últimos anos a Folha cometeu vários ilícitos jornalísticos.

Abraçou o obscurantismo, investiu em reportagens escandalosamente armadas, copiando em segunda mão o estilo vergonhoso da Veja. Junto com os demais grupos de mídia, abriu espaço para que a oposição ganhasse a cara macilenta de um José Serra, Aloyzio Nunes, Carlos Sampaio, Demóstenes Torres.

Chegou a abrir espaço para que um colunista de fora do jornal ocupasse a nobre página de Opinião para tratar como quadrilheiros repórteres que ousaram criticar o discurso obscurantista de Demóstenes no Supremo, contrário às cotas - do qual o próprio colunista havia sido o ghost writer.

Há algum tempo a cobertura do jornal vem mostrando respiros civilizatórios perceptíveis.

Mantem o velho vício do esquentamento de manchetes, muitas vezes indo contra o espírito da reportagem. Exercita idiossincrasias que ficariam melhor no Estadão.

Mas o editorial de hoje – contra os abusos dos presidentes da Câmara e do Senado -, é um marco, tão fundamental quanto o editorial que segurou os esbirros autoritários de Fernando Collor.

Rompe-se a blindagem inexplicável da mídia que, em nome do combate político, aceitou incensar os piores políticos da República, portadores dos mais anacrônicos princípios morais e do mais deslavado negocismo. E, na alma da Folha, a imagem do velho Frias se sobrepõe, finalmente, à de Roberto Civita.

A grande próxima batalha se dará em torno da recondução de Rodrigo Janot ao cargo de Procurador Geral da República. Com todas as críticas que se possa fazer ao seu estilo, sua eventual derrota para um Eduardo Cunha, Renan Calheiros e Fernando Collor será uma derrota das instituições para o coronelismo mais desbragado.

EDITORIAL

Submissão

Num futuro não muito distante, a aliança entre grupos políticos moderados e fundamentalistas religiosos obtém expressiva vitória eleitoral. Logo se estabelece, num país de tradições laicas e liberais, o predomínio da repressão, do obscurantismo e do preconceito.

Em "Submissão", polêmico livro de Michel Houellebecq recém-traduzido no Brasil, imagina-se o domínio de certa "Fraternidade Muçulmana" sobre o Estado francês.

O Brasil por certo não é a França retratada nesse romance, e se o fanatismo de alguns grupos traz perigo à sociedade ocidental, não há sinais de sua atividade em São Paulo, no Rio de Janeiro ou em Brasília.

Um espírito crescente de fundamentalismo se manifesta, contudo, em setores da sociedade brasileira –e, como nunca, o Congresso Nacional parece empenhado em refleti-lo, intensificá-lo e instrumentalizá-lo com fins demagógicos e de promoção pessoal.

O ativismo legislativo que se iniciou com a gestão de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) na Câmara dos Deputados, e que Renan Calheiros (PMDB-AL) não deixou de seguir no Senado, possui o aspecto louvável de recuperar para o Parlamento um padrão de atuação e de debate por muito tempo sufocado.

Essa aparência de progresso institucional se acompanha, porém, dos mais visíveis sintomas de reacionarismo político, prepotência pessoal e intimidação ideológica.

Tornou-se rotineiro, nos debates do Congresso, que este ou aquele parlamentar invoque razões bíblicas para decisões que cumpre tratar com racionalidade e informação.

Condena-se a união homoafetiva, por exemplo, em nome de preceitos religiosos e de textos –não importa se a Bíblia ou o Corão– que podem muito bem ser obedecidos na esfera privada, mas pouco têm a contribuir para a coexistência entre indivíduos numa sociedade civilizada e plural.

Muitas religiões pregam a submissão da mulher ao homem, abominam o divórcio, estabelecem proibições a determinado tipo de alimento, condenam o consumo do álcool, reprovam o onanismo, legislam sobre o vestuário ou o corte de cabelo.

Nem por isso se pretende, nas sociedades ocidentais, adaptar o Código Penal a esse tipo de prescrições, dos quais muitos exemplos podem ser encontrados no texto bíblico. Sobretudo, não é função do Estado legislar sobre a vida privada.

Ainda assim, num evidente aceno a parcelas crescentes do eleitorado, uma verbiagem religiosa toma conta do Congresso.

Nos tempos de Eduardo Cunha, mais do que nunca a bancada evangélica se associa à bancada da bala para impor um modelo de sociedade mais repressivo, mais intolerante, mais preconceituoso do que tem sido a tradição constitucional brasileira.

O conservadorismo sem dúvida é forte no Brasil; a pena de morte, a redução da maioridade penal, a rejeição ao aborto e à liberação das drogas têm apoio em larga parcela da população –e diante de tais assuntos, naturalmente, cada pessoa tem o direito de se posicionar como lhe parecer melhor.

Mas nossa sociedade também é, felizmente, mais complexa do que pretendem os mais conservadores.

A tradição do sincretismo religioso, da liberalidade sexual, do bom humor, da convivência com pessoas vindas de todos os países e das mais diversas culturas, a prática do respeito, da cortesia e do perdão constituem elementos tão cultivados na identidade brasileira quanto o que possa haver –e indiscutivelmente há– de autoritário e violento em nosso cotidiano.

O debate entre essas forças contraditórias é constante e, a rigor, interminável. Não combina com o açodamento das decisões que, em campos diversos, têm sido tomadas na Câmara dos Deputados.

Seria equivocado criticar seu presidente por ter finalmente posto em votação algo que se arrastava há anos nos labirintos da Casa, como a reforma política. É inegável, entretanto, que Eduardo Cunha atropelou as próprias instâncias institucionais ao impor ideias como a do distritão na pauta de votações.

A toque de caixa, questões intrincadas como a do financiamento às campanhas eleitorais sofreram apreciações seguidas, e nada comprova mais a precipitação do processo do que o fato de que, em cerca de 24 horas, inverteram-se os resultados do plenário.

Uma espécie de furor sacrossanto, para o qual contribui em grande medida o interesse fisiológico de pressionar o Executivo, alastra-se para o Senado. No susto, acaba-se com a reeleição e se altera a duração dos mandatos políticos. O cidadão assiste a tudo sem sentir que foi consultado.

No meio dessa febre decisória, há espaço para que o Legislativo comece a transformar-se numa espécie de picadeiro pseudorreligioso, onde se encenam orações e onde se reprime, com gás pimenta, quem protesta contra leis penais duras e sabidamente ineficazes.

Setores políticos moderados se veem quase compelidos a conciliar-se com a virulência ideológica dos que consideram a defesa dos direitos humanos uma complacência diante do crime; dos que consideram a defesa do Estado laico uma agressão contra a fé; dos que consideram a racionalidade ocidental uma forma de subversão, e as conquistas do iluminismo uma espécie de conspiração diabólica.


Os inquisidores da irmandade evangélica, os demagogos da bala e da tortura avançam sobre a ordem democrática e sobre a cultura liberal do Estado; que, diante deles, não prevaleça a submissão.

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