O que se pretende com a terceirização é exatamente a transformação do trabalhador em um número.
Por Jorge Luiz Souto Maior*
Em recente reclamação trabalhista (processo n.
0000979-06.2012.5.15.0096) uma das reclamadas, a tomadora de serviços, para
reforçar seu argumento de que não devia nenhum valor ao reclamante porque não
era sua empregadora, acabou asseverando que o reclamante era um “ilustre
desconhecido”.
Claro que essa afirmação é chocante e ofensiva, mas não se
pode deixar de reconhecer que é provida de uma extrema honestidade, bem ao
contrário, aliás, do que se verifica na argumentação daqueles que têm
defendido, publicamente, a ampliação da terceirização, utilizando-se da
retórica de que estão preocupados em melhorar as condições de trabalho e de
vida dos trabalhadores em geral.
Ora, o que se pretende com a terceirização é exatamente o
efeito confessado pela reclamada naqueles autos processuais, a transformação do
trabalhador em um número, afastando, por conseguinte, qualquer preocupação de
natureza humana da relação de trabalho. Com efeito, quanto ao "ilustre
desconhecido" não é preciso ter preocupações que dizem respeito a doenças,
gravidez, dificuldades de relacionamento, posicionamentos ideológicos, atuação
em defesa de direitos pelo exercício de greve etc.
Visualizando a relação entre a empresa tomadora e a
prestadora nos limites estritos de obrigações comerciais, voltadas à execução
do serviço, ao dito tomador do serviço pouco importa quem realize a atividade e
sob quais condições, cumprindo ao prestador de serviço, dito empregador, se
submeter às exigências do tomador para “não perder o contrato”. As
consequências serão sentidas, concretamente, na vida do terceirizado, advindo
dessas exigências contratuais transferências abruptas de local de trabalho,
alterações de horário e dispensas, que são, em verdade, punições pelo
comportamento, mas que não aparecem como tais.
A pretendida terceirização também nas atividades-fim amplia,
de forma generalizada essa precarização da condição humana do trabalhador,
sendo por demais importante perceber que essa situação, se de fato adviesse
(pois ainda tenho boas razões para acreditar que não virá) não seria ruim
apenas no mundo do trabalho.
De fato, como as relações sociais são determinadas pelo modo
de produção, o que se teria com a ampliação da terceirização seria a
generalização de relações sociais desprovidas de valores humanos básicos, como
a solidariedade, a confiança, que são, sobretudo, decorrentes da socialização
no trabalho. Sem esse referencial, as pessoas deixam de se reconhecer nas
outras e estas passam a ser vistas apenas como adversárias ou como concorrentes
em potencial. Mais que isso, a lógica do modo de produção, estimulada pela
terceirização sem limites, que é a da indiferença, tende a dominar o cenário
das relações humanas, ou melhor, desumanizadas.
O interessante, ou trágico, é que a humanidade durante longo
percurso vem buscando formulações valorativas de natureza humanista,
enfrentando, inclusive, o desafio de superar os obstáculos à efetivação desses
valores integrados à ordem jurídica dos Direitos Humanos, e, de repente, por
ingerência midiática, impulsionada para o atendimento de interesses econômicos
determinados, não se tem o menor escrúpulo em preconizar que todo esse esforço
histórico seja jogado no lixo.
E é assim que se assiste à deterioração das estruturas que,
em algum momento, constituíram alguma esperança para a condição humana na
sociedade capitalista. Um sintoma dessa destruição é ver na mesma página de um jornal
foto de uma ação policial massacrando estudantes da considerada, por muitos,
melhor universidade do país e outra anunciando o triunfo da articulação
antidemocrática do "líder" da Câmara de Deputados, para aprovação do
financiamento empresarial de campanha.
As pessoas e entidades que estão no comando da sociedade,
aplaudindo ação policial contra professores, estudantes e trabalhadores em
geral, buscando financiamento empresarial para partidos políticos, defendendo a
diminuição da maioridade penal como solução para a segurança pública e
preconizando a ampliação da terceirização estão, de fato, destruindo toda
possibilidade da construção de uma sociedade pautada pela racionalidade dos
Direitos Humanos.
É a sociedade que se diz baseada na meritocracia dando voz e
prevalência à mediocridade.
Veja-se que no aspecto específico da terceirização, quando
se defende a terceirização da atividade-fim o que se está fazendo é contrariar
a própria essência do preconizado empreendedorismo, baseado na ideia de que se
deve atuar em ramos nos quais se detenha o conhecimento e se possa agir com
maior competência. Ora, se uma empresa terceiriza a sua finalidade ela deixa de
ser uma empreendedora, não sendo mais que mera compradora dos serviços de outra
empresa, perdendo a dita especialidade e transferindo para a prestadora dos
serviços os próprios atributos meritórios.
Diante dessa objeção alguns defensores da terceirização
dizem: “mas uma empresa comercialmente responsável, pensando, inclusive, nas
escolhas responsáveis feitas pelo consumidor, não irá terceirizar sua
atividade-fim”. Mas se não o fará, a defesa da ampliação da terceirização serve
a quem? Destina-se às empresas social e economicamente irresponsáveis?
Enfim, para a preservação de interesses econômicos não revelados,
os defensores da terceirização estão contribuindo para a desestruturação plena
das potencialidades de valores humanos duramente concebidos, estimulando a
barbárie, que se verificaria consagrada com a instituição da sociedade dos
“ilustres desconhecidos”.
*Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor
livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor
de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como
instrumento de justiça social (2000).
Fonte: Carta Maior
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