É preciso abrir o jogo: não se trata só de Dilma ou do PT,
mas da exaustão do atual arranjo político brasileiro. E mais: o que idealizamos
na Constituição de 1988, cujo valor é indiscutível, era construir uma
democracia plena e um país decente, com acesso generalizado à educação pública,
saúde gratuita e previdência social. Mais ainda, acesso à terra para os que
nela precisassem trabalhar, bem como assistência social para os que dela
necessitassem. A execução desse programa encontra dificuldade crescente porque
a estrutura estatal é burocratizada e corporativista. E também porque a
sociedade não quer e não pode pagar cada vez mais tributos quando os gastos não
param de se expandir.
Era inevitável que nos encontrássemos nesta situação? Não.
Contudo, para evitar a crise do sistema de partidos e da relação
Executivo-Legislativo, teriam sido necessários, no mínimo, os contrapesos da
“lei de barreira” e da proibição de alianças partidárias nas eleições
proporcionais, restrição aos gastos de campanha e regras mais severas para seu
financiamento.
Mas não é só. A má condução da política econômica tornou
impossível ao governo petista seguir oferecendo os benefícios sociais
propostos, senão pagando o preço da falência do Tesouro. Não me refiro às
bolsas, que vêm do governo Itamar, foram ampliadas em meu governo e
consolidadas nos governos petistas: elas são grãos de areia quando comparadas
com as “bolsas empresário" oferecidas pelos bancos públicos com recursos
do Tesouro. Sem mencionar o grau inédito de corrupção, azeite que amaciou as
relações entre governos, partidos e empresas e deu no que deu: desmoralização e
desesperança. Oxalá continue a dar cadeia também.
Diante disso, como manter a ilusão de que as instituições
estão funcionando? Algumas corporações do Estado, sim, se robusteceram: partes
do Ministério Público e da Polícia Federal, segmentos do Judiciário, as Forças
Armadas e partes significativas da burocracia pública, como no Itamaraty, na
Receita e em algum ministério, ou no Banco Central. Entretanto, no conjunto, o
Estado entrou em paralisia, não só o Executivo, como também a burocracia e o
Congresso. Este pelas causas acima aludidas, cuja consequência mais visível é a
fragmentação dos partidos e a quase impossibilidade de se constituírem maiorias
para enfrentar as dificuldades que estão levando ao desmonte do sistema
político.
Nada disso aconteceu de repente. Repito o que disse em
outras oportunidades: na viagem que a presidente Dilma fez em 2013 para prestar
homenagens fúnebres a Mandela, acompanhada por todos os ex-presidentes, eu
mesmo lhes disse: o sistema político acabou; nossos partidos não podem ou não
querem mudar; busquemos os mínimos denominadores comuns para sair do impasse,
pois somos todos responsáveis por ele. Apenas o presidente Sarney se mostrou
sensível às minhas palavras.
Agora é tarde. Estamos em situação que se aproxima à da
Quarta República Francesa, cujo fim coincidiu com os desajustes das guerras
coloniais, tentativas de golpe e, finalmente, a solução gaullista. Aqui as
Forças Armadas, como é certo, são garantes da ordem, e não atores políticos. É
hora, portanto, de líderes, de pessoas desassombradas dizerem a verdade: não
sairemos da encalacrada sem um esforço coletivo e uma mudança nas regras do
jogo. A questão não é só econômica. Sobre as medidas econômicas, à parte os
aloprados de sempre, vai-se formando uma convergência, basta ler nos jornais o
que dizem os economistas.
Mesmo temas sensíveis, nos quais ousei tocar quando exercia
a Presidência e que caro me custaram em matéria de popularidade, voltam à
baila: no âmbito trabalhista, como disse o novo presidente do Tribunal Superior
do Trabalho, Gandra Martins, cintando como exemplo o Programa de Proteção ao
Emprego, comecemos por aceitar que o acordado entre os sindicatos prevaleça sobre
o legislativo, desde que respeitadas as garantias fundamentais asseguradas aos
trabalhadores pela CLT. Enfrentemos o déficit prevideciário, definindo uma
idade mínima para a aposentadoria que se efetive progressivamente, digamos, em
dez anos. Aspiremos, com audácia, a que um novo governo, formado dentro das
regras constitucionais, leve o Congresso a aprovar algumas medidas básicas que
limitem o endividamento federal, compatibilizem o gasto público com o
crescimento do PIB e das receitas e melhorem o sistema tributário, em especial
em relação ao ICMS.
Dentre as medidas fundamentais a serem aprovadas, a
principal é, obviamente, a reformulação da legislação partidário-eleitoral. O
nó é político: eleições com a legislação atual resultarão na repetição do mesmo
despautério no Legislativo. Há que mudar logo a lei dos partidos, restringindo
a expansão de seu número e alterando as regras de financiamento eleitoral, para
evitar a corrupção. Por boas que tenham sido as intenções da proibição de
contribuição de empresas aos partidos, teria sido melhor limitar a contribuição
de cada conglomerado econômico a, digamos, x milhões de reais, obrigando as
empresas a doar apenas ao partido que escolherem, e por intermédio do Tribunal
Superior Eleitoral, que controlaria os gastos das campanhas. A proibição pura e
simples pode levar, como ocorreu em outros países, a que o dinheiro ilícito, de
caixa 2 ou do crime organizado, destrua de vez o sistema representativo.
Ideias não faltam. Mas é preciso mudar a cultura, o que é
lento, e reformar já as instituições. É tempo para que se verifique a
viabilidade, como proposto pela Ordem dos Advogados do Brasil e por vários
parlamentares, de instituir um regime semiparlamentarista, com uma Presidência
forte e equilibradora, mas não gerencial.
Só nas crises se fazem grandes mudanças. Estamos em uma.
Mãos à obra.
*FERNANDO HENRIQUE CARDOSO É SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA
REPÚBLICA
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